O escritor argentino Jorge Luis Borges estava certo quando em “Pierre Menard: autor do Quixote” (1939) fez uso do anacronismo deliberado para mostrar que dois textos iguais em dois tempos diferentes seriam completamente distintos.
Para ser mais simples: a mesma frase escrita 200 anos atrás e hoje em dia, teria interpretações completamente diferentes, porque não existe nada escrito que seja eterno e imortal. Os textos, como tudo na cultura, estão sempre envoltos pelas suas circunstâncias sociais e históricas. E este é o motivo pelo qual Gladiador II não conseguiu atingir o público que era o alvo de Ridley Scott.
A continuação do filme clássico do ano 2000, com Russell Crowe, acontece 24 anos mais tarde. Agora, o protagonista é Hanno (Paul Mescal), um líder da Numídia que é capturado durante uma ação de expansão territorial de Roma.
Uma vez em Roma, Hanno é colocado para lutar no Coliseu e se destaca, sendo apadrinhado por Macrinus (Denzel Washington). Acontece que quem capturou Hanno é Acacius, casado com Lucilla que é, na verdade, mãe de Hanno que havia fugido após Maximus, seu pai, ter perdido o poder. Hanno, então, é Lucius e isso não é spoiler, é só a sinopse.
A partir desta descoberta, o objetivo de Hanno passa a ser não apenas sobreviver, mas também libertar o povo de Roma dos caricaturais imperadores Caracalla e Greta, e o longa se torna um filme sobre vingança do passado e, principalmente, superação dos traumas em nome da retomada da paz.
Pouco se pode dizer sobre o que o filme é. Basicamente, ele é um épico clássico, com trilha sonora potente e cenas de batalha emocionantes. O roteiro também é perfeito para fazer com que tenhamos a plena sensação de que estamos tanto nos calabouços de Roma quanto no grande Coliseu, sempre iluminado pelo prazer da violência.
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O único problema é que o mundo já não é mais como era nos anos 2000, quando o primeiro filme foi lançado. Naquele momento, vivíamos com prazer histórias épicas. É só lembrarmos que Troia é de 2004, década em que vivemos o auge do gênero, com os épicos fantásticos como O Senhor dos Anéis. Porém, vinte anos depois, esta história já não se sustenta mais porque… o mundo não é mais tão épico como era antigamente. Agora, nosso pensamento, amparado tanto pelo avanço das críticas sociais quanto pela evolução tecnológica, não aceita mais uma história única, linear com uma premissa que vai deixando sofrimento e mortes para trás.
Por exemplo, logo no começo, com a invasão da Numídia e a morte da esposa de Hanno, ficamos com aquele gostinho para saber mais sobre o local e com um pé atrás de que Roma não era o mocinho da história. O peso de um Império que saiu colonizando tudo deixa uma vontade de inverter o ponto de vista da história.
Bem, para não deixar para trás, a Numídia foi o nome utilizado durante muito tempo para localizar o território onde hoje estão a Argélia e a Tunísia. Basicamente, é aquele ponto ao norte da África onde o Mar Mediterrâneo cruza com o sul da Europa, mais ou menos ali na botinha da Itália.
Depois, enquanto Hanno estava escravizado, encontramos o personagem do pacifista e médico Ravi, que conta que veio de outras terras exilado, também lutou como gladiador, mas largou a espada para cuidar de feridos. Quando perguntado porque não volta para sua terra, ele diz que seus filhos nasceram ali, falavam latim e que aquela, então, era sua terra. Este fato aponta diretamente para a crise de imigração na Europa, mas a ponta fica levantada ali e solta, abandonada, embora presente, afinal, o efeito épico tem que prevalecer.
Por fim, há a própria questão da escravidão dos lutadores do Coliseu. Isso não é problematização, contudo, o cinema épico de Hollywood tem o vício de criticar a violência sistemática de governos, mas sua saída não é o fim da violência e da escravidão, e sim uma solução mágica em que coloca um dos escravos sendo, na verdade, um descendente da família de sangue imperial para que ele se erga e salve o povo.
Assim, a crítica deixa de ser ao próprio sistema e se volta individualmente para aquele homem que, no caso, teria um “direito natural” ao trono. Então, é o seu sangue, sua estirpe e seu destino que o tiram da condição de escravizado, e não suas vitórias ou sua capacidade de comandar sua classe.
Portanto, não há mais nada a dizer a não ser que Gladiador II é um excelente filme só que 20 anos atrasado. Basta ver os comentários dos espectadores para perceber um gostinho amargo que muitas vezes não se sabe explicar. É o tempo. O tempo é implacável para quem conta histórias. Hoje, a história dos vencedores continua vencendo, mas não consegue mais silenciar e ignorar a história dos vencidos.
Não existe paz, apenas momentos sem guerra. Esta é a lição de Gladiador I e II.