Uma das minhas melhores leituras de 2024, foi um livro pequenino de um poeta que não conhecia, mas que, quando entrei em contato, a reconheci como gigante. Trata-se de Arqueologias, de Prisca Agustoni, escritora nascida na suiça que desde 2002 vive no Brasil. Publicado pela Editora Peirópolis, o livro é o retrato de uma mulher em busca de um Brasil, diante de uma “perda ” de uma terra natal. De certa forma, o livro é a expressão de uma espécie de deslocamento da poeta.
Prisca Agustoni trabalha como professora de Literatura e de Criação Literária na Universidade Federal de Juiz de Fora e atua em diversos campos como tradutora, poeta, crítica literária, escrevendo poesia e prosa em italiano, francês e português. Com seu livro O gosto amargo dos metais (7Letras, 2022) ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte (2022) e o Prêmio Oceanos/poesia 2023.
Em Arqueologias, ela dialoga com obras de artistas estrangeiros que também elegeram terras brasileiras como lar e tiveram suas produções influenciadas por nossa cultura e ambiência. Tal como diz Verônica Stigger no prefácio do livro, estamos diante de uma multiplicidade de sentidos presente em um singelo e poderoso gesto poético.
Fascinado pela sua escrita, fizemos uma breve entrevista com a autora. sobre Arqueologias e outras obras Confira:
Arqueologias me parece um livro de descobertas e anotações entre culturas. O que você diria que são as suas arqueologias do livro?
Em Arqueologias, há uma tentativa de captar em palavras as “primeiras impressões” desse imenso país que se tornou o meu: são poemas que escrevi durante meus primeiros anos brasileiros, entre 2000 e 2005. Havia em mim um forte sentimento de estranhamento (por eu ser estrangeira) misturado a uma paixão muito grande para com essa terra e sua cultura. Desse sentir duplo, desse movimento duplo de aproximação e estranheza, nasce a surpresa, o espanto, a possibilidade da poesia encontrar uma raiz de onde se regenerar, nascer, florescer.
O contato com a obra fotográfica de francês Marcel Gautherot (presente no acervo do IMS do Rio) também teve um impacto muito forte em minha sensibilidade nesse momento em que estava fortemente impregnada pela cultura brasileira do passado e do presente, principalmente a rural, interiorana, que conheci primeiro durante minhas primeiras viagens ao Brasil. O impacto com o acervo fotográfico do Gautherot acentuou o processo de encantamento com essa cultura e terra.
“Havia em mim um forte sentimento de estranhamento (por eu ser estrangeira) misturado a uma paixão muito grande para com essa terra e sua cultura.”
Prisca Agustoni em Arqueologias
No prefácio, a Verônica Stigger fala do caráter poético e intuitivo da escavação arqueológica. Como a poesia pode nos ajudar a tocar os passados percorridos para além dos documentos?
Acredito que nenhuma memória presente em documento ou em relato seja totalmente fiel ao “real”: é uma narrativa, que atravessa o tempo por um filtro – individual ou coletivo. Nesse sentido, ficcionalizar a memória, ou melhor, preencher os interstícios silenciosos que inevitavelmente se abrem a partir de um fato ou documento do passado, é papel da arte, da literatura. Ressignificá-los, dar a eles nova roupagem e sentido hoje, acho que é um papel que a literatura, a poesia vem fazendo desde sempre. Por isso gosto bastante da observação da Verônica Stigger quando fala do “intuitivo”: é um movimento intuitivo, esse que faz com que sempre voltemos a certo passado (individual ou coletivo), ficcionalizando-o, para construir nosso presente.
As suas arqueologias parecem suas, mas também parecem coletivas, elas extrapolam o seu eu em busca de um nós. No que os poetas precisam estar mais atentos em nosso mundo contemporâneo?
Penso que não há uma resposta única para isso – depende muito da vivência e das circunstâncias que envolvem o dia a dia de cada sujeito hoje, numa sociedade que, apesar da brutalidade que vemos, se tornou mais complexa ao se abrir à possibilidade de visões de mundo plurais e justas revindicações para a pluralidade de vozes e identidades.
Acho que a quantidade de informações (ou de des-informações) que recebemos todos os dias pelas mídias sociais, o tempo todo, e que em certa medida nos paralisam – ao invés de nos ativar – é um aspecto que me preocupa e que envolve também a capacidade de ver/viver o poético e de ver como o poético pode agir na contramão dessa avalanche de palavras, objetos, dejetos, bandeiras, falas etc.
Não sei, mas cada vez mais penso o poético como um território de resistência ativa onde é preciso desacelerar e esvaziar, com relação a essa corrida frenética rumo à destruição, não só ambiental, física, política (entendida como polis), mas também simbólica, da linguagem mesmo, e da arte entendida cada vez mais como geradora de produtos a serem consumidos e esquecidos.
Mas há mil questões que atravessam nosso cotidiano, e que me preocupam. No meu caso específico, há dois pontos que me instigam a pensar e repensar formas de escrita que possam dar conta de uma mudança de foco: de um lado, a crescente ameaça à vida, à “casa”, que causa ondas migratórias globais (sujeitando principalmente mulheres e crianças a uma humilhação, violência e escravidão que não deveriam mais ser admitidas e toleradas, após tantos avanços em termos de Direitos Humanos), mas que encurrala não só pessoas, mas também animais e biomas a um esforço para a sobrevida; e por outro lado, a emergência ambiental, climática, num sentido amplo, que deveria nos obrigar a repensar outros ritmos de vida, de trabalho e de “produção” de objetos de consumo, mas também de maneiras de nos colocarmos como artistas numa sociedade que capitaliza tudo.
Inclusive o pensamento, a ideologia, as causas, e que neutraliza com a maior facilidade qualquer voz que não se rende a essa corrente deglutidora. É um impasse que me parece grave e urgente, para o qual não tenho obviamente respostas, ao qual tento responder, com modéstia e assumindo minhas contradições, com um trabalho lento e teimoso na escrita, que tenta não ceder ao fácil, ao óbvio, ao apelo rápido e de massa, o linear, ao “eu” centralizador – dono de uma verdade profética.
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Um dos meus poemas preferidos de Arqueologias é o curtíssimo Revelação, que poderia até ser visto como um hai Kai. Fale um pouco da questão da língua pra você, essa língua que leva a pátria escorregando como peixes.
Esse poema resume bastante bem a maneira como lido com as várias línguas/culturas que me habitam e que habito, ainda que de forma transitória – e em geral com qualquer noção de “identidade”: para mim a identidade é um termo escorregadio e necessariamente sempre parcial, que podemos habitar (ou hospedar) por instantes e de forma simultânea com outras formas de ser, mas nunca de forma definitiva ou definitória de quem somos. Sou de língua meterna italiana (oficialmente), mas a língua de berço é um dialeto que não sei escrever; aprendi francês com 6 anos e desde então, foi um caminho de saltos e mergulhos, de língua em língua, de cultura em cultura.
Vivi 10 anos numa cidade francesa, estudei e me formei em letras hispânicas, moro no Brasil há 22 anos e falo, leio e escrevo com certa naturalidade também alemão e inglês. O que sou, então, em termos identitários-linguísticos? Com meus afetos mais próximos (mãe e irmãos) falo dialeto até hoje; com meus filhos, falo português. O que é “língua materna”, ou melhor, qual delas é?
Por que a língua única deveria me definir, delimitar, se posso ser e sentir o mundo em várias línguas, como os vários braços de um povo que se serve deles para conhecer seu entorno? Tenho certa desconfiança em geral com conceitos como pátria, identidade, ancestralidade, porque penso que o nosso destino como espécie é a adaptação, a mudança para a sobrevida. É também a nossa graça.
Sem contar que na história de cada um de nós, e de nossos grupos, há na raiz de quase todos traições, filhos ilegítimos, abandonos, adoções, orfandades, novos agrupamentos. Penso penso que a noção de uma ancestralidade (que é uma noção forte) tem que considerar essa narrativa como sendo em parte ficcional, escorregadia. Por isso mesmo, encantadora. Penso a ancestralidade como esse aspecto: uma narrativa camaleônica sobre quem achamos que somos e quem talvez seremos.
Decidi intencionalmente escrever em três idiomas, e estou agora trabalhando em um livro de poesia multilíngue, onde entra também o inglês e algo do alemão. Eu sou isso, nós somos essa pluralidade-complexidade, e a língua é um instrumento poderoso de partilha, e não uma gaiola identitária.
“a identidade é um termo escorregadio e necessariamente sempre parcial, que podemos habitar (ou hospedar) por instantes e de forma simultânea com outras formas de ser, mas nunca de forma definitiva ou definitória de quem somos. “
Prisca Agustoni em Arqueologias
Para finalizar, nossa pergunta de sempre: quais os livros que mudaram a sua vida e por quê?
Lembro que na adolescência li com espanto Kafka. Foi uma leitura que me levou para outra dimensão da existência, mas aos quinze não sabia como dizer isso. Só sentia. Nesse sentido, o livro do desassosego de Fernando Pessoa também foi fundamental, e a poesia de Eugenio Montale, que estudava na escola. Esses três nomes foram cruciais nos anos da adolescência porque me fizeram querer viver mais um pouco nesse mundo (apesar de eu ter tido uma formação mais forte em artes plásticas, nessa fase de minha vida).
Depois, vieram muitas outras leituras, mais mulheres entraram no meu cotidiano como leitora. Entre elas, gostaria de citar três: a poeta argentina Alejandra Pizarnik, cuja poesia li muito quando comecei a escrever, por volta dos vinte anos; a escritora suíça Fleur Jaeggy, cuja novela, que acabo de traduzir para a editora Ayinê, Os suaves anos do castigo, foi um marco, um livro cult para toda minha geração; e a escritora canadense, Anne Michaels, cujo romance Fugitive pieces (que li em tradução italiana) continua sendo para mim um modelo de escrita narrativa inspiradora. Um livro espetacular. Aquele livro que, quando li, pensei: “puxa vida, se um dia eu tiver que escrever prosa, quero me inspirar nela”. Bom, estou escrevendo meu primeiro romance, e Michals está sempre por perto….
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