Em uma das aulas do meu curso de mestrado em Estudos Literários, na Université Bordeaux Montaigne, na França, minha turma recebia a professora convidada, a paulistana Luana Antunes, que leciona no Instituto de Linguagens e Literaturas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Eu, a única brasileira da classe estava ansiosa para ouvi-la. Além de trazer nomes como de Conceição Evaristo e Lélia Gonzalez para a discussão de alunos majoritariamente franceses, Luana fez um breve comentário sobre a relação entre Françoise Ega e Carolina Maria de Jesus.
A primeira, uma mulher nascida na Martinica, país localizado nas ilhas caribenhas que foi colonizado pela França, hoje um departamento ultramarino ainda sob o domínio francês, e a segunda, uma brasileira de Minas Gerais que em 1948 se mudou para a favela do Canindé no estado de São Paulo. Já esperava que ninguém conhecesse as autoras e pensadoras brasileiras citadas, mas tampouco conheciam Ega, escritora em língua francesa que imigrou para Marselha, cidade no sul da França, nos anos 1950. Eu como brasileira e já leitora de Carolina, me senti extremamente tocada por essa ligação entre as autoras e bati o martelo naquela aula. Esse seria o tema da minha dissertação.
Leia também: Carolina de Jesus recebe homenagem nos Estados Unidos 50 anos depois da primeira tradução
Durante o trajeto no ônibus para as casas das madames da burguesia francesa, Ega que trabalhou como empregada doméstica em um período de sua vida para aumentar a renda da família, tinha o hábito de ler a revista Paris Match e, um dia, folheando as páginas, se deparou com um perfil de Carolina Maria de Jesus e seu Quarto de Despejo- Diário de uma favelada, publicado em 1960, que em francês, ganhou o título de Le Dépotoir. Vale lembrar que a obra de Jesus, assim que publicada, logo virou um best-seller e foi rapidamente traduzida para 16 línguas.
Ega não perdeu tempo, e por meio da literatura, decidiu entrar em contato com Carolina e dedicar suas cartas à autora de Diário de Bitita (1986), que, aliás, o livro, teve sua primeira publicação em francês em 1982, intitulado Journal de Bitita pela editora Métailié. A obra chegou ao Brasil somente em 1986 pela editora Nova Fronteira. O desejo de Françoise de se comunicar com Carolina, resultou no livro Lettres à une noire, que originalmente seria intitulado Lettres à Carolina, mas por uma escolha editorial, foi mantido Lettres à une noire, que ganhou, recentemente, em 2021, uma versão em português pela editora Todavia.
Em um trecho de Quarto de Despejo, Carolina faz um desabafo e se pergunta:
“Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão tão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro país sofrem igual aos pobres do Brasil?”
Alguns anos depois, nas linhas que abre o livro Cartas a uma negra, Ega responde à Jesus:
“Pois é, Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos lêem você por curiosidade, já eu jamais a lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, e tanto é assim que as outras pessoas, por mais indiferentes que sejam, ficam impressionadas com as suas palavras.”
E assim começa a narrativa de Cartas a uma negra, de Françoise Ega. Os escritos da martinicana datam de junho de 1962 até 1964. O conjunto de cartas endereçadas à Carolina, relatam em detalhes a experiência das condições de exploração do trabalho, as injustiças sociais, sobretudo, no que diz respeito aos imigrantes recém-chegados das ex-colônias francesas que se vêem obrigados a exercerem funções subalternas e muitas das vezes, humilhantes, em busca de uma vida melhor. Além de narrar sua própria história, Ega, com um olhar apurado e muito observador, também nos conta o dia a dia nas casas da elite francesa, descreve a fúria e a insensibilidade das patroas, seus filhos mimados e alienados e relata o cotidiano das outras empregadas domésticas, meninas jovens que, diferente dela, não tinham outra opção senão aguentar os desaforos e humilhações dos patrões.
Françoise deixa a Martinica logo após a Segunda Guerra Mundial com o ensino médio completo e um diploma de datilógrafa. Na França, casou-se com o militar também de origem antilhana Frantz Julien Ega, alguns anos depois, se instalaram na cidade de Marselha. O casal teve cinco filhos. Mesmo com uma formação, Françoise teve dificuldade para encontrar emprego na sua área, assim como a maioria dos imigrantes antilhanos, e para aumentar a renda da família, ainda que contra a vontade de seu marido, começou a trabalhar como faxineira. No seio da burguesia francesa, Françoise pôde observar com uma lente de aumento como era o tratamento entre patrões e empregados, a relação de subalternidade compulsória e a violência sofrida pelas mulheres antilhanas ao chegarem à França.
Leia também: Carolina de Jesus, autora de “Quarto de Despejo”, ganha um site exclusivo sobre sua vida e obra
É por meio de suas vivências, que vai se moldando a escritora.
Na língua francesa há duas expressões interessantes de serem analisadas, femme de ménage e femme de lettres. A primeira quer dizer empregada, de maneira literal, mulher de limpeza e a segunda significa mulher das letras. Essa ambiguidade, ou melhor, essa complementação, presente na trajetória de Françoise é importante para compreender sua literatura e escolhas estilísticas e também nos deixa a reflexão de que tais funções não são excludentes. É sabido que o mundo da literatura tende a valorizar autores “letrados”, com uma educação formal, que, em sua maioria, são homens, brancos e da alta sociedade, esses sim são dignos de homenagens e de serem estudados. No entanto, autoras como Françoise Ega e Carolina Maria de Jesus nos ensinam que não há um manual ou regra para ser uma escritora, basta nascer com esse dom e ir ao encontro do papel e da caneta.
Quando Ega se depara com o perfil de Carolina entende que há muitas semelhanças em suas trajetórias. Quem explica melhor essas similitudes é a doutora em mundo lusófono pela Sorbonne Nouvelle e em Literatura pela UnB, Maria Clara Machado e que, atualmente leciona na Rutgers university.
– Seria muito difícil eu conseguir enumerar o que acho mais relevante rapidamente, mas, sobre as aproximações entre as obras, acho que o que me chamou mais a atenção quando eu soube de Françoise Ega foi a novidade de sua perspectiva autoral, que se relaciona obviamente com a de Carolina Maria de Jesus, pois são vozes de duas mulheres trabalhadoras, mães e migrantes pouco publicadas. O fato de a própria Ega ter percebido esses pontos de contato e estabelecido ela própria um diálogo com Carolina Maria de Jesus é ainda mais impressionante – analisa Maria Clara.
Pergunto para a professora, que defendeu sua tese de doutorado sobre as duas autoras, Ega e Jesus, como foi levar para uma universidade parisiense, tradicional e elitista autoras periféricas.
– Na França, a literatura de Ega cai na estante da literatura francófona, geralmente fica numa prateleira no fundo das melhores livrarias (as piores nem têm um lugar assim), dividindo espaço com todas as outras autoras e autores de língua francesa que não são considerados totalmente franceses (embora muitos o sejam formalmente) na França Hexagonal. É racismo. Precisa ser identificado, nomeado e combatido. Eu enfrentei certa resistência ao escolher esse tema na Sorbonne, mas consegui ir em frente, pois, ao conseguir uma parceria com a UnB, pude escrever a minha tese numa língua considerada periférica também, o português. E então fiz uma tese sobre duas autoras consideradas menores na Academia, numa língua tida como menos importante, especialmente em sua variedade brasileira (temos de lembrar que escrevi na Europa onde estudiosos portugueses buscam orientar o uso do português europeu formal).
Percebo, portanto, que venci algumas batalhas trabalhando pelas frestas. Agora, sobre o racismo francês, precisamos ter em conta que a maior parte da população que fala francês hoje não está na França, mas fora dela. Espero que essa população se interesse por ler e escrever em francês cada vez mais. Porque, a partir do momento em que as pessoas do Caribe, da África e de outras regiões do Globo que foram colonizadas pela França começarem a dominar o campo literário de língua francesa, isso vai mudar. Acho que é uma questão de tempo – reflete Maria Clara.
A literatura de minorias, muitas vezes, é enquadrada como apenas um documento, esvaziando as nuances literárias. Podemos notar tal estigma nas obras de Carolina e Françoise, que, apesar de serem autoras complexas, são estudadas como material sociológico. Sobre o tema Maria Clara nos elucida com sua opinião certeira.
– Acho que toda leitura que não limita é válida. Portanto, esses livros, na minha opinião, podem servir para excelentes análises sociológicas, mas não apenas. Por exemplo, na reedição de Cartas a uma negra em francês pela editora canadense Lux, finalmente o livro ganhou um belo prefácio da socióloga Elsa Dorlin. Mas ainda é um texto que privilegia apenas a leitura sociológica. Como sou da literatura, para mim, é importante ressaltar a literariedade, o trabalho poético e estilístico presente nas obras e como essas construções permitem leituras de mundos diversos, sem desmerecer as outras. Normalmente a análise literária fica em segundo plano porque, a meu ver, até a crítica literária ainda possui poucas ferramentas para analisar obras fora dos padrões formais aos quais estamos mais acostumadas. Aí a gente passa muito tempo dizendo que essas obras são interessantes e merecem ser lidas, mas sem explicar como do ponto de vista literário. Acredito que, para avançarmos, precisamos investigá-las mais a fundo a fim de ultrapassar as questões sociológicas. Essa é a contribuição que nós da literatura, acredito, podemos oferecer – ressalta Maria Clara.
Para seguir a análise literária das obras, recorro ao tradutor, pesquisador e professor da Universidade de Lille desde 2017, Vinícius Carneiro. Peço para o professor destacar os pontos mais relevantes e inovadores na obra de Ega e que se assemelham com a obra de Carolina. Vinícius responde sem rodeios.
– As duas autoras falam de lugares de subalternidade e fazem desse ponto de partida um espaço para a criação literária que problematiza a lógica social dominante. Porém, a força narrativa emerge do fato de as vozes das narradoras estarem intimamente ligadas às experiências de vida da catadora de lixo habitante da favela do Canindé de Carolina Maria de Jesus, no caso de Quarto de despejo, e da empregada doméstica em Marselha de Françoise Ega, no caso de Lettres à une noire. Mas o que me parece mais importante mesmo é pensar nos recursos selecionados pelas autoras para construir cada uma dessas obras. Estou falando da oralidade misturada com referência literária do romantismo brasileiro da brasileira e a oralidade cheia de expressões idiomáticas (frequentemente modificadas) da martinicana. Nos dois casos, estamos diante de escritoras lidando com o repertório literário e linguístico que tinham a sua disposição no momento e jogando com isso, manipulando, num trabalho de artesanato formal, tudo para criar universos narrativos – discorre o professor.
Leia também: Novo livro registra textos inéditos de “Quarto de Despejo”, de Carolina de Jesus
Vinícius também é o responsável pelo trabalho de tradução da obra de Françoise Ega, Lettres à une noire para o português.
– Quando descobri uma autora que escreveu um livro na França na década de 1960 após entrar em contato com a obra de Carolina Maria de Jesus, no exato instante pensei: como ninguém ainda não havia traduzido Lettres à une noire? Como eu ainda não conhecia Lettres à une noire? Como Françoise Ega não era devidamente conhecida e estudada na França e no Brasil? Logo, pareceu-me necessário traduzir Ega, mas não necessário porque era preciso que o público brasileiro compreendesse como houvera uma martinicana na França que sofrera como Ega, ou porque Cartas a uma negra seria, entre outras coisas, um livro que abriria consciências. Mas necessário porque a tradução de Ega é uma contribuição aos estudos sobre Carolina Maria de Jesus, ao seu impacto mundial, ao diálogo entre produções literárias tidas como subalternas. E também porque é uma obra literária pertinentemente paradoxal, cuja narrativa trata com frequência da impossibilidade de encontro entre duas autoras mas que ela mesma, enquanto narrativa, constitui-se como espaço do encontro – explica Vinícius.
Volto para a questão da recepção da obra de Ega na França e os estereótipos que acompanham sua literatura. Para isso, conto, mais uma vez, com a análise do professor.
– O verdadeiro motivo que faz com que a obra de Ega não seja conhecida mais na França, acredito, é a tendência de ela ser lida como documento e não literatura. Os textos de Ega, a verdade seja dita, é normalmente lida como um relato, como um testemunho, e não como um projeto literário, como romances, como literatura. Vida e texto, nesse sentido, são vistos como indissociáveis, não havendo espaço para a criação literária – reflete.
“Versos para Cruz, Conceição no altar/Canindé Jesus, oh Clara/nossa gente preta/tem feitiço na palavra/do Brasil acorrentado/ao Brasil que não se cala.”
O trecho citado acima é do samba enredo da Beija-flor de Nilópolis no carnaval de 2022, em que a escola de samba carioca trazia como enredo o seguinte tema “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-flor”. A agremiação da Baixada Fluminense tinha como proposta enaltecer as histórias e as vitórias da população negra. Portanto, a escola lembra a figura do poeta abolicionista Cruz e Sousa, a dama da literatura brasileira contemporânea Conceição Evaristo e uma das mais importantes escritoras do país, Carolina Maria de Jesus.
Carolina, a escritora que catava papel na favela do Canindé, na cidade de São Paulo, e se equilibrava entre criar três crianças sozinha e além de ter que combater a fome, precisava alimentar sua vocação para a palavra. Foi nesse contexto que a mineira escreveu seu diário, Quarto de Despejo. A produção literária de Carolina vai muito além dessa obra, no entanto, o livro marca sua carreira e a projeta como uma das maiores escritoras brasileiras e serve de influência para as gerações futuras.
A escritora e sua obra cruzaram o Atlântico e chegaram não somente nas mãos de Françoise Ega. Como conta a própria em um trecho de seu livro Cartas a uma negra.
“Eu descobri você, Carolina, no ônibus. Levo vinte e cinco minutos para ir até meu emprego. Penso que não tem a menor serventia ficar se perdendo em devaneios no trajeto para o trabalho.Toda semana me dou ao luxo de comprar a revista Paris Match, atualmente, ela fala muito dos negros. Foi assim que conheci a sublime sra. Houphouet com seu vestido de gala. Eu não iria lhe dedicar as minhas palavras, ela não me compreenderia. Mas você, Carolina, que procura tábuas para o seu barraco, você, com suas crianças aos berros, está mais perto de mim.”
Além de inspirar sambas enredo, Carolina e sua obra, junto com Françoise Ega terá sua história contada no teatro. A adaptação, feita pela diretora e dramaturga franco-brasileira Brigitte Bentolila, é baseada no livro da escritora martinicana. O ponto de partida da peça é as correspondências entre as duas autoras e, principalmente, focada na parte musical, pois Carolina também é compositora de sambas e chegou a lançar discos. A montagem conta com quatro canções de Carolina e quatro canções da cantora antilhana, Moune de Rivelle.
– Comecei a pegar anedotas bem humoradas, e tive a ideia de fazer 20 quadros com 20 momentos dessas correspondências. A partir desses quadros estabeleci uma lógica dramatúrgica com dois espaços, da Carolina e da Françoise. Peguei os espaços das datas para colocar a página da Carolina e a página dos lugares de onde ela escreve essas cartas. Todo o espaço da Françoise é chez moi e da Carolina são as datas – me contou a diretora.
Brigitte foi responsável por diversos projetos culturais, festivais, workshops e oficinas para atores de teatro, cinema e televisão na França e no Brasil. A diretora está à frente da companhia franco-brasileira Noir sur Blanc e já dirigiu espetáculos nos dois países. A peça, que será intitulada Cartas à Carolina, ainda não tem previsão de estreia.
O impacto da obra de Françoise Ega não para por aí. O artista carioca Yure Romão, que há mais de 10 anos mora em Paris, desenvolve um trabalho com o título “Résonances”, o nome faz alusão, justamente, aos ecos e as ondas sonoras que são atravessadas pelo Tempo. Como a literatura de Françoise e Carolina. O projeto, que será realizado tanto em livro quanto em espetáculo, conta a história de brasileiras que vieram para França trabalhar como empregadas domésticas com famílias de diplomatas, entre os anos 1999 e 2003. A ideia é fazer um espetáculo e escrever um livro com essas histórias anônimas.
Músico, compositor e diretor de teatro, Yure Romão realizou um mestrado sobre o Slam na França, a partir de poetas da diáspora africana na Universidade Paris 7.
– O objetivo principal do projeto é fazer ecoar as histórias pessoais de mulheres brasileiras e dos departamentos ultramarinos franceses (antigas colonias francesas) trazidas para trabalhar como empregadas domésticas na França e que muitas vezes eram sujeitas à situações análogas à escravidão – me contou Yure.
A partir de um olhar sensível e artístico, Résonances busca celebrar essas vidas que passaram por sistemas de migrações organizados pela França (anos 1960) e pelo Brasil (anos 2000), tornando visíveis as conexões e redes de solidariedade construídas por essas mulheres, em sua maioria negras, em diferentes contextos e épocas no território francês.