Não sou o tipo de pessoa que se importa com spoilers. Depois de já ter visto o filme, claro. Quando já conheço a história, aí sim, falo entre uma tragada e uma soprada de intelectualidade para quem ainda não tenha visto, seja o filme que for: “ah, não importam os spoilers, a obra é muito maior que isso.”
Mas, sério, a narrativa é grande parte da experiência de ficção pra mim. Me julgue, mas eu aposto que você também adora se envolver e se surpreender com um enredo bem fechadinho – ou aberto.
E é por isso que eu, uma little monster, não estava muito a fim de escutar o novo álbum da Lady Gaga, Harlequin, que ela produziu para acompanhar o filme Joker: Folie À Deux, do qual ela é uma das estrelas do elenco principal. O longa chegou aos cinemas na primeira quinta-feira de outubro de 2024, e o álbum saiu na sexta-feira anterior, em setembro. Não sei por qual dos dois lançamentos eu estava mais ansiosa: a continuação da obra-prima que é o primeiro Joker, ou o álbum novo da Gaga.
Por isso, fiquei com medinho de pegar algum spoiler: se veio para acompanhar o filme, com certeza há algo de revelador nessas músicas!
Outro motivo para uma certa resistência ao mais recente lançamento da diva foi saber que a maior parte seriam covers. Quatro anos à espera de um álbum novo e, de 13 músicas, só 2 originais?
É claro que não levei essas bobagens muito adiante e escutei o álbum inteiro 20 minutos após ele ficar disponível no Spotify.
Fiquei “coringada” pela vibe do filme antes de ver. A expectativa aumentou, evidentemente, mas sejamos francos: assim que a Lady Gaga foi anunciada como parte do elenco, a gente já soube qual seria a vibe desse novo capítulo do Joker, do diretor Todd Phillips. O que esperamos, desde então, é que o novo filme se aproprie do mundo soturno e melancólico que o primeiro criou e abrace toda a loucura e a bizarrice para empoderar todos, todas e todes que saírem do cinema cantando: the joker is meeeee!
Harlequin começa com “Good Morning”
Harlequin chegou, portanto, parecendo confirmar que as expectativas para Folie À Deux estavam olhando para o lugar certo. A faixa de abertura, “Good Morning”, inicia o álbum criando a atmosfera do amanhecer de uma noite de embriaguez, nos anos 40 ou 50 talvez, da qual você está retomando a sobriedade e aceitando quem é a partir do seu eu no limiar da lucidez.
Da melancolia ao jazz enérgico
Com exceção de “The Joker” e “Gonna Build a Mountain”, dá para dizer que todas as faixas começam como uma cantiga melancólica e evoluem para um jazz enérgico, com as doses certas para gerar grandes cenas musicais para o filme. Um amigo disse que, no geral, tem algo estranho, porque a voz da Gaga soa muito sobreposta aos instrumentos, “como se ela estivesse apenas cantando em cima da original”. Creio que gerar esse tipo de crítica também é um mérito desse álbum que já nasce com uma aura tão vintage e clássica capaz de causar estranheza e anacronia.
Uma baladinha no meio do caos
No meio de tantos saxofones, trompetes e harmonias vocais, temos “World on a String”, uma baladinha bem aconchegante que me lembrou muito a música que a Celine canta para o Jesse no final de Before Sunset, da trilogia do Richard Linklater. Pelo número de vezes que a Gaga repete can’t you see, can’t you see I’m in love, creio que dá para esperar momentos de calorzinho no coração entre o personagem dela e o do Joaquin Phoenix.
As faixas mais memoráveis de Harlequin
“The Joker” é a música para a qual Lady Gaga gravou um clipe no Museu do Louvre. Inclusive, o perfil do Louvre no Instagram aumentou bastante o número de seguidores e o engajamento com a publicação do teaser desse clipe. Eles aproveitaram também para divulgar uma exposição que vai começar no museu algumas semanas após a estreia do Joker. “Figures du Fou” (Figuras do Louco, em tradução literal do francês) exibirá obras que exploram a representação dos loucos na arte a partir da Idade Média.
Se bem inserida em uma cena icônica, “The Joker” certamente vai grudar na cabeça. Mas se o filme realmente quiser acolher e empoderar a loucura e a estranheza, o take a look at me now repetido histericamente em “If My Friends Could See Me Now” vai grudar ainda mais.
“Happy Mistake” é uma das originais, mas quando começou, pensei que fosse um cover de “Hurt“, do Johnny Cash. A semelhança não parece um acaso, já que essa é uma canção que fala de esconder a dor sob a maquiagem e as fantasias.
Harlequin segue o padrão de elegância e esplendor dos outros dois álbuns de jazz que Gaga gravou com Tony Bennett. Provavelmente, vai seguir com eles também na categoria dos lançamentos menos lembrados da cantora. Entretanto, ele já foi eficiente em expressar como a Lady Gaga se relaciona com a sua personagem em Joker, já que como ela mesma disse, Harley Quinn é “uma mulher complexa que quer ser quem quiser em qualquer momento. E que não vai deixar ninguém segurá-la”.
O álbum fecha com um cover de Frank Sinatra. No The Guardian, um crítico questiona se o mundo precisa de mais uma versão de “That’s Life”. Minha resposta é: “obviamente, sim”. Novos intérpretes são sempre bem-vindos aos clássicos. Viva às novas versões, que muitas vezes são nossas primeiras vezes em contato com obras de valor inestimável do passado.
É por isso que, no final das contas, um álbum de covers parece até uma melhor decisão do que um lançamento somente com originais. Isso indica que Joker: Folie À Deux, um filme que “pode ser considerado um musical”, de acordo com algumas análises, preza mais por abraçar a loucura com braços de gigantes de um lado passado clássico e estabelecer com eles algum tipo de identificação. Essa prioridade vem antes da pretensão de declarar uma originalidade que seria mais solitária.
Ouça Harlequin antes de ver Joker: Folie À Deux.