Em João do Rio o pavor não é somente a noite, mas a noite urbana. A concretude dos vícios e da cólera, o anonimato da cidade grande e o perigo do social, que permeiam a metrópole, são os causadores de horror, espanto e dor nos contos reunidos em Pavor Dentro da Noite.
Há algo mais pavoroso do que a imensidão infinita de uma cidade que não se conhece por completo, em que milhões de pessoas te atravessam despercebidas?
Ambientando todos os contos na atmosfera inebriante do Rio de Janeiro do começo do século XX, na época vista como “Cidade da Morte” ao invés de “Cidade Maravilhosa”, assuntos como doença, vício e violência tomam foco pelas lentes do autor. Era bem na virada do século, no momento de modernização da, agora, república, que a cidade se torna dividida entre belle époque e os espaços sociais à margem do processo de modernização. E é nesse cenário que o terror de João do Rio acende, criando situações sórdidas e cruéis contadas em salões de festa ricamente frequentados e decorados. Entre os becos do centro da cidade e os salões de festa da elite, a crueldade perpassa de um a outro.
A visão do jornalista e escritor é clara: o horror não está nos becos, mas nas festas regadas a champagne…, E esse contraste é nítido. Enquanto nos becos a ambientação pavorosa é criada, nos salões de festa a atmosfera voyerista da crueldade se solidifica, pois são os membros da elite que cometem crimes e atrocidades, que se deixam levar pelos vícios e más intenções, enquanto a camada marginalizada é o objeto de abuso.
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Em, “O bebê de tartalana rosa”, um homem rico conta histórias de carnaval a seus amigos próximos, que desempenham, como nós leitores, um papel de voyer dos acontecimentos. Na história, ele se diz impressionado com o carnaval de rua, o qual nunca havia frequentado, uma vez que o carnaval da elite era em salões de baile e ricas mansões. No baile público do Recreio, suas impressões são fatídicas: horror. Apavorado, mas instigado com aquilo que via pela primeira vez – pessoas pobres, ruas sujas – ele enxerga a possibilidade de se entregar em prazeres carnais, lá onde ninguém o reconheceria ou o julgaria, onde ele poderia fazer o que quisesse. A vontade era tamanha que o faz perseguir uma pessoa misteriosa fantasiada de bebê durante todo o feriado.
Quando, finalmente, ele consegue encontrá-la, essa pessoa de nome e gênero desconhecidos, pede-a para tirar a máscara de bebê que a cobria. Quando tirada, ele se assusta com a figura, que se assemelha a uma caveira, sem nariz. O que chama atenção aqui é a própria visão do personagem quanto às festas populares e sua atitude despreocupada em agir como bem queria e em fazer o que quisesse, com quem quisesse. Nesse sentido, acaba por espancar a pessoa, que não condiz com seus desejos e fantasias. Na época, o surto de bexiga era alto, e atingia, principalmente, as camadas sociais marginalizadas. O que, inicialmente, era apresentado pelo contador da história como quase sobrenatural era, na verdade, bem natural, mas longe de seu convívio.
João do Rio traz uma perspectiva bem afiada e atentamente apurada quanto aos espaços sociais e sua dinâmicas, permitindo uma reflexão acerca do processo modernizador que jogava muitos para os cantos e becos. A sensibilidade quanto à moléstia dos desfavorecidos aparece quando contrastada com a crueldade apresentada em primeiro plano, sobre a elite voyerista e suas brincadeiras. O não dito desempenha um papel de destaque em Pavor Dentro da Noite
No entanto, assuntos como o desejo e seu caráter incontrolável, as fantasias e a culpa também são um destaque no quesito terror de João do Rio.
Tudo na vida é luxúria. Sentir é gozar, gozar é sentir até ao espasmo. Nós todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir de-sejos, na raiva de possuir. É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, exasperante. Um deus morto é a convulsão, é como um sinal de porneia”. As turbas estrebucham. Todas as demências anônimas, todas as hiperestesias ignoradas, as obsessões ocultas, as degenerações escondidas, as loucuras mascaradas, inversões e vícios, taras e podridões desafivelam-se, escancaram, rebo-lam, sobem na maré desse oceano.
No conto que abre o livro, “Dentro da noite”, uma personagem-narradora ouve a conversa de dois amigos que se encontram em uma viagem de trem. Nela, um deles abre o jogo sobre seu sumiço e confessa um mal: ele sentia prazer em machucar mulheres. Claro que isso não é dito com todas as palavras, afinal, o desejo e o prazer aqui são confessados de forma envergonhada, mas impotente, inevitável. Rodolfo, o pecador, diz a seu amigo ter estragado seu noivado por conta de suas atitudes, sua insistência em deixar sua noiva ser espetada por ele com alfinetes, algo que o causava um prazer imenso, sem culpa ou remorso, pois os gemidos de dor apenas aumentavam a sensação.
Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura
Essa ideia do prazer proibido e velado perpassa em quase todas as histórias. João do Rio, como escritor e como jornalista, gostava de revelar o escondido, de cavar as covas sociais, abri-las, escancará-las, tanto de maneira antropológica como psicológica. As histórias de “taras” e “vícios” aqui expostas são reveladoras tanto de uma natureza íntima do humano quanto da conjuntura social em que ele as ambienta.
Algo como em “Emoções”, 6º conto do livro. Uma narrativa que junta o desejo, as taras e os vícios com o controle desempenhado pelos membros da elite. Na história, o barão de Belfort confessa sentir prazer em brincar com a mente das pessoas, principalmente com jogos de azar, escolhendo vítimas para viciá-las no jogo, até o ponto de perderem tudo e acabarem na loucura.
Eu gosto de ver as emoções alheias, não chego a ser bisbilhoteiro das taras do próximo, mas sou o gozador das grandes emoções do entorno. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção
Nesses complexos, o autor traça dinâmicas incontornáveis: o diálogo da sexualidade com as diversas formas de dominação e determinação do ego, seus encontros com o dinheiro e o poder. Além disso, o traço voyeurístico presente em todas as históriasse encontra com a tradição oral na cultura do horror: ouvir e testemunhar acontecimentos que parecem proibidos ou íntimos e sentir prazer nisso, seja você um personagem em Pavor dentro da noite ou um leitor de João do Rio.