Enquanto planejava e escrevia o ilustre Mrs. Dalloway, Virginia Woolf submergiu no universo de Clarissa Dalloway e de suas festas como nunca havia feito em suas demais obras. O que encontramos em seus diários é que o processo de escrita de um livro era seguido por um momento profundo de melancolia, e a autora fazia o possível para cortar o cordão umbilical que seu texto esculpia entre eles antes de ser publicado. Todavia, o contexto que delineou em Mrs. Dalloway se tornou marcante não apenas para seus leitores, mas também para a autora.
Entre os anos de 1922 e 1925, Virginia decidiu escrever contos paralelos que compartilhavam um mesmo elemento: a mescla social proporcionada por uma festa (e a festa como ambientação em si). Dentre essas pequenas histórias escritas nesse período, o leitor conta com a tradução para o português de algumas delas, todas publicadas pela editora Nós e traduzidas por Ana Carolina Mesquita. Apesar da ampla gama da literatura de Virginia Woolf publicada pela Nós, neste texto me concentrarei em dois desses pequenos textos: A apresentação e Juntos e separados (mas ressalto que as demais traduções são indispensáveis para a biblioteca pessoal dos apaixonados por Virginia).
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Antes de destrinchar esses contos, é importante mencionar porque a temática da festa se mostrou tão importante para a autora. Como escreve a tradutora Ana Carolina Mesquita nas notas iniciais das edições de Virginia publicadas pela Nós, “a festa enquanto acontecimento representa um microcosmo que é atravessado pela beleza, pela celebração, pelas aparências e pela confirmação das posições sociais – e, portanto, em sua outra face, pela melancolia, pelo lamento e pela frustração das expectativas e sonhos.”
Há, ainda, uma repetição que me chamou a atenção conforme li esses materiais: todos esses textos carregam o nome de Mrs. Dalloway na primeira linha, sendo que a personagem sempre está em ação de alguma maneira. O início do próprio Mrs. Dalloway narra: “Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores”. Já em Juntos e separados encontramos uma protagonista que une dois personagens:
“Mrs. Dalloway os apresentou, dizendo você vai gostar dele”. Por fim, em A apresentação, Mrs. Dalloway se aproxima de uma personagem secundária para dar início ao evento de tal conto: “Lily Everit viu que Mrs. Dalloway vinha abater-se sobre ela desde o outro lado da sala […]”. Mas me parece óbvio que seu nome seja mencionado sempre nas primeiras linhas, visto que ela é a anfitriã das festas tão significativas, não é?
Juntos e separados
De meados de 1925, ou seja, no ano de publicação de Mrs. Dalloway, Virginia escreveu Juntos e separados, conto que só foi publicado postumamente na coletânea A Haunted House, de 1944, volume organizado pelo seu viúvo, Leonard Woolf. A princípio, o texto seria intitulado como “A conversa”, visto que esse é o fio condutor que delineia a narrativa diante daquela festança de Clarissa e Richard Dalloway. Mas haveria uma forma de se comunicar plena e efetivamente no meio de um evento social como tal?
É pensando nisso que o leitor patinará nas falhas de comunicação que permeiam o conto. Acompanharemos de mais perto dois convidados, Ruth Anning e Roderick Serle, que são apresentados um ao outro por Clarissa. O que acontece, porém, é que a realidade de ambos é bastante distinta: Serle ocupava um mundo que parecia “revolver em torno de uma superficialidade social que, segundo ele sente, o alheia de sua verve poética (p. 10)”, enquanto a realidade de Anning era circunscrita à vida doméstica, que acaba se apequenando demais diante não apenas da festividade, mas também daquela junção tão aleatória proporcionada pela anfitriã.
Ao longo do texto o leitor certamente se sentirá incomodado, tal qual ambos os convidados se sentem. Surge um sentimento de inquietação, uma necessidade de que o encontro acabasse quanto antes, quase como quando encontramos um colega que não falamos há anos e precisamos passar alguns minutos caçando assunto para preencher um silêncio à espreita.
Ainda que o diálogo pareça seguir um caminho interessante, notamos, pelo fluxo de consciência, que a conversa estava fadada ao fracasso:
“Fibras de seu ser [referente a Ruth Anning] flutuavam caprichosamente para lá e para cá, como os tentáculos de uma anêmona-do-mar, ora empolgados, ora decepcionados, e seu cérebro, a milhas dali, frio e longínquo, nas alturas recebia mensagens que depois resumiria a tempo para que, quando as pessoas falassem de Roderick Serle, ela dissesse sem hesitação: “Gosto dele” ou “não gosto dele”, e sua opinião estaria formada para sempre.” [p. 25]
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A apresentação
Entre os dois contos que exploro nesse texto, A apresentação é certamente o meu favorito. Provavelmente escrito em 1925, o conto não chegou a ser publicado enquanto Virginia Woolf estava viva, e veio a ser publicado apenas em março de 1973, na Sunday Times Magazine. Aproveito para pontuar uma questão posta nas notas inicias da edição que utilizo como base: a versão que temos em mão foi coligida por Susan Dick em The complete shorter fiction of Virginia Woolf, vinda de um caderno de anotações da autora.
E agora podemos esmiuçar o conto à vontade.
Como de costume nos escritos de Virginia Woolf, o leitor encontrará um fluxo de consciência bem estabelecido logo no início da narrativa. Ainda que também enxerguemos Mrs. Dalloway na cena, a “mente protagonista” deste conto não é a anfitriã, e sim Lily Everit, uma jovem que seguiria anônima na ocasião se não fosse pela pena da escrita de Virginia. Apesar de que uma festa pode trazer um lado muito supérfluo da sociedade, não é difícil encontrar nesse microcosmo alguém de caráter e personalidade aprofundada – e esse é o caso da jovem Lily.
Lily era alguém com excelentes resultados acadêmicos, e, apesar de se sentir satisfeita com esse feito, acaba por deixar sua satisfação intelectual de lado para estar equiparada às expectativas que a sociedade tinha a respeito de uma menina. Para que fosse uma moça típica, não poderia ser tão boa em algo, por assim dizer, pois quem deve se sobressair em uma realidade como a que se insere são os homens. Do que adiantava seu ensaio sobre o autor Jonathan Swift, que recebera nota máxima, se os “grandes feitos” eram fruto da labuta dos homens? Enquanto mulher, o seu dever social era louvar o que eles construíam, louvar a utilidade desses trabalhos e se aceitar em sua posição de pequenez que o fato de ser Mulher lhe conferia.
“[…] Lily pensa que é sua obrigação reproduzir os papéis sociais cristalizados de homem e de mulher, cortando pela raiz tudo aquilo que, dentro de si, possa entrar em conflito com isso.” [Notas iniciais da edição, p. 10]
Se pondo cada vez mais à margem, logo Lily parece esquecer totalmente de sua magnitude – ou melhor: ela mesma faz com que se esqueça disso. Quando passa a conversar com outro convidado (um homem, é bom pontuar), acompanhamos a consciência de Lily e notamos a posição de vulnerabilidade que caía sobre ela. E assim Virginia escreve:
“[…] tudo aquilo a fazia sentir que acabara de sair de sua crisálida e que a proclamavam algo que na escuridão confortável da infância ela jamais tinha sido – uma criatura frágil e bela, […] uma criatura limitada e circunscrita que não podia fazer o que bem entendia, uma borboleta com mil facetas nos olhos e delicadas e lindas asas, e inumeráveis dificuldades e sensibilidades e tristezas: uma mulher.” [p. 22]
E talvez esse seja um dos motivos pelos quais Virginia se fixava no tema da festa: tanto em Juntos e separados quanto A apresentação notamos mulheres que eram sugadas pelo microcosmo de tal modo a se fagocitarem por completo.
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