Em “Kindred”, a grande dama da ficção científica Octavia Butler aborda a história da escravidão nos Estados Unidos a partir do sci-fi.
Não é a toa que Octavia Butler é conhecida como “a grande dama da ficção científica”. Nascida em 1947 na Califórnia, ela ganhou alguns dos mais importantes prêmios do gênero, como o Nebula. Butler se destaca no campo da ficção científica por sua abordagem feminista e antirracista – posições que nem sempre se colocam como elementos centrais neste gênero, cujos autores mais reconhecidos são homens brancos. A autora diz que escreve sobre o poder pelo fato de ter tido tão pouco dele sendo uma mulher negra em um contexto de segregação racial nos Estados Unidos – e faz isso como ninguém.
Dentre suas obras, destacam-se “A Parábola do Semeador”, “Filhos de Sangue” e “Kindred” – este último, no Brasil, ganhou o título “Kindred – Laços de Sangue”, em edição da Editora Morro Branco. A obra conta a história de Dana, uma mulher que, em seu 26º aniversário, enquanto está em seu apartamento novo com seu marido Kevin, experiencia algo inexplicável: como num passe de mágica, ela desaparece e se encontra à beira de uma floresta, onde vê uma criança de afogando em um rio. Ao salvá-lo, vê-se diante do cano de uma espingarda e, tão de repente como foi parar naquele lugar estranho, retorna ao apartamento, molhada e confusa.
Após esse episódio, outras ocorrências similares voltam a acontecer, e aos poucos Dana se dá conta de que os episódios são viagens no tempo nas quais ela retorna à Maryland, no sul dos Estados Unidos, no contexto da escravidão no século XIX. Também se dá conta de que parece ligada àquele lugar, em especial a Rufus, que ela passa a acompanhar em diferentes momentos da vida quando se vê transportada ao passado.
Sobre a obra
Kindred é uma obra essencial, que ao mesmo tempo em que oxigena a ficção científica ao trazer debates essenciais que muitas vezes passam ao largo do gênero – como o racismo, as relações de gênero, os impactos de eventos violentos na constituição das subjetividades e das práticas sociais – também oxigena os debates sobre esses temas ao fazê-lo a partir da linguagem inventiva e radical da ficção científica.
Trata-se de um encontro potente no qual uma escritora que somente pode ser descrita como brilhante articula estéticas e políticas distintas para pensar como cada uma delas pode contribuir para a construção de um debate crítico, denso e acessível sobre alguns dos temas mais complexos e difíceis da história e das relações humanas.
É interessante pensar na tradução do livro no Brasil, que optou por manter o termo “kindred” ao invés de traduzi-lo, incluindo um subtítulo, “laços de sangue”, que oferece algumas pistas mais palpáveis aos leitores brasileiros. A ideia de kin, em inglês, remete à noção de parentesco – tema amplamente abordado na antropologia para pensar os modos como são constituídas relações de parentesco para além e aquém de laços consanguíneos. Kindred, assim, remete ao processo de fazer parentesco, ao efeito de ter sido tecida uma relação de parentesco entre mim e o outro.
É na tessitura dessa relação de parentesco que sujeitos se veem conectados – como é o caso de Dana e Rufus na história de Butler. O título não diz com todas as letras que tipo de parentesco há entre eles, apenas aponta para o fato de que há laços que os unem – laços marcados por histórias manchadas de sangue e violência. É na leitura do livro que vamos compreendendo o grau e a natureza desses laços.
Há muito o que se debater a partir da leitura de Kindred, mas elencamos, aqui, alguns temas que aparecem na obra e que mostram o quão densa e importante ela é.
A questão da temporalidade
O tempo é sempre um elemento importante em obras de ficção científica, pois é no modo como o tempo se comporta, de forma distinta àquela dita “normal”, que a estranheza e a infamiliaridade constroem certo clima importante a essas histórias. Em Kindred, o tempo não só é dobrado pela experiência da viagem do tempo como também tem sua lógica de funcionamento alterada durante as viagens de Dana e Kevin: o que no mundo “real” significa segundos ou minutos, no passado para o qual são lançados pode significar semanas, meses, anos.
Essas mudanças na percepção e no passar do tempo impõem desafios na relação das personagens entre si, despontando em tensões que, somadas à brutalidade dos eventos que acometem as personagens, especialmente Dana, parecem fazer com que as relações estejam sempre à beira de alguma espécie de colapso. Ao mesmo tempo, é diante do desfazimento de tudo, inclusive de algo tão supostamente concreto quanto o tempo, que as personagens buscam manter e reinventar os laços entre si.
Viagem no tempo
A viagem no tempo é um dos temas mais abordados no gênero da ficção científica. Seja em clássicos da literatura como “A Máquina do Tempo”, de H. G. Wells, ou em obras icônicas do cinema, como “De Volta para o Futuro”, nosso fascínio com a possibilidade de voltar ao passado ou viajar para o futuro movem nossa imaginação e nos fazem imaginar como o mundo seria diferente caso essas fossem, de fato, opções viáveis.
Em Kindred, Octavia Butler aborda o tema mas de uma perspectiva totalmente inovadora. A possibilidade de viajar no tempo não é movida apenas pelas perguntas “e se pudéssemos mudar o futuro?” e “como seria viver no passado?”, mas por uma reflexão profunda a respeito das marcas que o passado de violência escravista deixa no presente. Dana é uma mulher negra que, ao viajar no tempo, vive no corpo o que foi a escravidão. A diferença com que a experiência de viagem no tempo atravessa a vida dela e de seu marido Kevin, um homem branco, reforçam a posição ética do pensamento decolonial de que a experiência é sempre localizada, e o modo como os eventos atravessam e constituem nossa subjetividade e relação com o mundo é sempre marcada por intersecções de raça, gênero e classe.
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A complexidade das personagens
Uma das coisas que mais faz Kindred ser uma obra brilhante é o modo como Octavia Butler cria personagens complexos. Butler consegue fugir nos maniqueísmos e binarismos que, sustentados em uma certa moral, categorizam eventos e sujeitos como “bons” ou “ruins” para pensar nos processos políticos e nas relações de poder que atravessam tempos históricos e relações interpessoais, buscando na sutileza das nuances desvendar exatamente os mecanismos que tornam possível a continuidade de práticas de violência através dos tempos.
Isso significa que, na relação entre Dana e Rufus, por exemplo, o que se tem é um mosaico complexo e ambivalente de sentimentos que, ainda que demarque claramente uma crítica contundente não só à escravidão mas a todo o sistema racista e mecanismos de hierarquização e desumanização que a sustentaram e se perpetuam até os dias atuais, é capaz de mostrar que, nas relações com outras pessoas e com a nossa própria história, há a possibilidade de zonas cinzentas, borradas, nas quais nem tudo é evidente e onde cabem as contradições próprias do processo de reflexão e construção crítica de si e do mundo.
A brutalidade da violência colonial escravista
Ler Kindred a partir de uma chave decolonial é entender de que modos Octavia Butler constrói uma história sobre a escravidão para pensar seus efeitos nos dias atuais. Afinal, se de certa forma (e apenas de certa forma) se pode dizer que a escravidão e a colonização chegaram ao fim, não é possível afirmar que a colonialidade e os pilares de sustentação da escravidão não se perpetuaram e seguem produzindo efeitos, mesmo que sob outras roupagens, na atualidade.
A leitura da obra de Butler nos demanda coragem, pois é somente agarrados à coragem de contar o passado em sua brutalidade que é possível acompanhar como a escravidão marca o corpo de Dana (e de todas as outras personagens escravizadas) nos períodos em que ela se encontra no passado. As descrições de castigos e violências de toda ordem cometidas contra as pessoas escravizadas nos relembra que a História é, muitas vezes, suficientemente terrível, não sendo necessário inventar nenhum outro universo ou contexto, como é comum no sci-fi.