Patrícia Melo é uma escritora, roteirista, dramaturga e artista plástica brasileira. Possui mais de 10 livros publicados. Em 2001, conquistou o Prêmio Jabuti, na categoria romance, com Inferno (2000). Além disso, tem trabalhos adaptados para o teatro e para o cinema. Recebeu diversas premiações internacionais e suas obras já estão publicadas em vários países como Inglaterra, França, Alemanha e outros. Estão entre os títulos mais recentes: Mulheres empilhadas (2019) e Menos que um (2022).
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Mulheres empilhadas, publicado pela editora Leya Brasil, foi um dos livros selecionados para concorrer ao Prêmio Femina 2023, da França, na categoria de melhor romance estrangeiro, com o título Celles qu’on tue. Essa premiação, criada em 1904, é uma das mais tradicionais da França, acontece anualmente e possui um júri composto exclusivamente de mulheres.
Ao expor problemas ainda tão enraizados na sociedade como a violência contra a mulher e o feminicídio, decorrentes, sobretudo, de um sistema alicerçado no poder patriarcal, a autora escancara a desigualdade de gênero, a discriminação e a opressão feminina. Misturando conteúdo ficcional e fatos jornalísticos, a narrativa amplia a necessidade de discussão do tema, atuando também como uma forma de denúncia. Com uma linguagem sem rodeios ou, até mesmo, ácida, a narrativa ficcional demonstra de modo impactante outros episódios que tratam da temática que domina, subjuga e humilha as mulheres.
Confira algumas citações da obra:
[…] nós, mulheres, morremos como moscas. Vocês, homens, tomam porre e nos matam. Querem foder e nos matam. Estão furiosos e nos matam. Querem diversão e nos matam. Descobrem nossos amantes e nos matam. São abandonados e nos matam. Voltam do trabalho cansados e nos matam.
Esses matadores de mulheres, eu aprendi, tem um vocabulário próprio. Você tem que saber traduzir o que eles dizem. Quando eles dizem “eu te amo”, saiba: eles estão dizendo que você tem dono. Quando eles falam que sentem ciúmes, você tem que entender que eles estão falando de direito de uso e de propriedade. Você é como o carro dele. O celular dele. A casa dele. O sapato dele. Ele é o senhor do engenho. Você é a escrava. Ele é o fazendeiro. E você, o gado. Ele é proprietário. E você, o produto. E seu casamento, seu namoro, seu vínculo são sua desgraça, sua condenação à morte. Quando ele pede desculpa, quando ele pede pra voltar atrás, ele está avisando: sua contagem regressiva já começou. Então é bom você ser esperta. Fuja desse homem. Desapareça. Apague a mensagem.
É claro que eles não nascem assim, com desejo de matar mulheres. Alguns até nascem, os psicopatas. Mas os psicopatas são a elite dos assassinos. Já nascem prontos. A grande massa operária de assassinos, digo, a maioria, tem que aprender o ódio, antes de sair matando por aí. Meu pai aprendeu muito bem. Nada mais fácil do que aprender a odiar as mulheres. O que não falta é professor. O pai ensina. O Estado ensina. O sistema legal ensina. O mercado ensina. A cultura ensina. A propaganda ensina. Mas quem melhor ensina, segundo Bia, minha colega de escritório, é a pornografia.
E no tribunal, todos dizem que a culpa é nossa. Nós, mulheres, sabemos provocar. Sabemos infernizar. Sabemos destruir a vida de um cara. Somos infiéis. Vingativas. A culpa é nossa. Nós que provocamos. Afinal o que estávamos fazendo ali? Naquela festa? Àquela hora? Com aquela roupa? Por que afinal aceitamos a bebida que nos foi oferecida? Pior ainda: como não recusamos o convite de subir até aquele quarto de hotel? Com aquele brutamontes? Se não queríamos foder? E bem que fomos avisadas: não saia de casa. Muito menos à noite. Não fique bêbada. Não seja independente. Não passe daqui. Nem dali. Não trabalhe. Não vista essa saia. Nem esse decote.
Você está surpresa – riu Carla. – Tecle “morta pelo…” no Google e veja o resultado.
Mais tarde conferi:
“Morta pelo”
Morta pelo namorado
Morta pelo marido
Morta pelo ex
Morta pelo companheiro
Morta pelo pai
Morta pelo sogro
O mal de aprender esse tipo de coisa é que a gente fica viciado. Todo dia
eu digitava “morta pelo” e recebia aquela enxurrada de sangue na cara.
Não importa onde você esteja. Não importa sua classe social. Não
importa sua profissão. É perigoso ser mulher.
Antes do tapa, ofensas verbais. Vagabunda. Preguiçosa. Puta. […] O tapa é um divisor de águas. Ele inaugura a fase da pancadaria. Empurrões. Socos. Todo tipo de golpes. […] Mas claro que pode ocorrer de eles quebrarem o seu braço antes mesmo dos xingamentos. Alguns são afoitos. Querem liquidar o assunto o quanto antes. Mas é certo que a maneira como você vai morrer depende de muitos fatores: dosagem alcoólica do macho. Nível de frustração do macho. Montante de pressão no trabalho dele.
Saiba que os chutes também fazem parte dessa fase que tem início com o tapa no rosto. Eles gostam de chutar sua barriga, suas pernas, seu rosto no momento em que você já está caída no chão, sem forças. Para você aprender, eles dizem. Avisam: se você for embora, eu acabo com a sua vida. Mato seus pais. Mato nossos filhos. Só depois, quando deixa de ser divertido usar as próprias mãos e pés para espancar e chutar, é que vem a fase em que eles pegam a panela de pressão, a faca, o fio do aspirador em pó ou qualquer outro objeto resistente, pesado ou pontudo, qualquer coisa que queime, perfure ou comprima para colocar um ponto final na vida de suas namoradas. Esposas. Companheiras. Amantes.[…]
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