A peça escolhida da vez foi Um Monte de Imagens Quebradas [A Heap of Broken Images], do escritor indiano Girish Karnad. O autor, que escreve tanto em canarim, língua do sul da índia, quanto em inglês, foi um dos grandes dramaturgos contemporâneos do país, assim como participou ativamente do cinema indiano e da chamada Bollywood.
Em geral, suas peças giram em torno de questões contemporâneas da humanidade, tendo como ponto de partida a história e a mitologia. Um Monte de Imagens Quebradas, de 2006, no entanto, trata de nosso mundo em sua máxima atualidade.
Um Monte de Imagens Quebradas é uma breve peça sobre Manjula Noyak, uma mulher que dá uma entrevista para um canal de televisão sobre um famoso romance que havia escrito e que, agora, estreava em adaptação para o cinema. Ela está sozinha e em breve texto pré-preparado de dez minutos, ela se vê respondendo questões que sempre eram referidas a ela (e que também deveriam ser direcionadas ao próprio Karnad), como por que escrever em inglês e não em canarim?
No caso dela, por acolher e tratar de uma irmã doente — agora falecida — que falava apenas em inglês. Entretanto, o que Manjula não esperava é que após seu discurso uma duplicação sua, já fragmentada em seu livro, ia se desdobrar em outra: na tela do estúdio, sua própria imagem aparece e começa a inquirir a si própria sobre seu passado e tudo que havia falado e vivido até então.
Intelectuais que eu respeito, escritor que foram gurus para mim, amigos que eu pensei que dariam tapinha na minhas costas e curtir meu sucesso — todos eles, de repente, estão cuspindo fogo. Como você se atreve a escrever em inglês e trair o canarim?
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O mais interessante do espetáculo de Karnad é a utilização de um recurso amplamente explorado no teatro contemporâneo como a própria estrutura de sua escrita. Assim, enquanto na maioria das vezes a utilização de telas se fazia como um recurso quase cinematográfico, ou seja, como ampliação do espaço cênico com cenas que se dariam no “exterior” ou, até, a partir de recortes e miniaturização cênica, o diretor as utiliza para desdobrar a própria figura de sua personagem.
Além disso, Karnad não busca explicar seu recurso narrativamente nem tampouco dar à personagem uma desconfiança sobre o dispositivo: sem vácuos, a entrada de si próprio em uma tela parece tão normal quanto, por exemplo, perguntarmos por nós próprios em nossa consciência antes de dormir. De alguma forma, o jogo parece ser direcionar não propriamente se a voz é verdadeira, se ela existe materialmente ou apenas na mente da personagem, mas justamente em atualizá-la cenicamente, como o autor resolvesse reduplicar — tal como Deleuze pensa a ideia da diferença em Diferença em Repetição — a figura, por exemplo, de uma ama nas obras de Shakespeare para que suas personagens tivessem a quem confessar seus segredos.
Mas quem escuta aqui? Um especialista, por exemplo, já declarou que nenhum escritor indiano pode se expressar com honestidade — ele ou ela — em inglês. ‘Para escritores indianos não é uma “medida de desonestidade”. É evidente, alguém poderia perguntar quantos escritores em canarim são honestos quando escrevem…em canarim.”
De recurso simples, trata-se de um espetáculo muito potente e de diversas aberturas, cuja temática, embora tenha sido amplamente utilizada nos últimos anos, parece ainda oferecer algumas novas faces. Um Monte de Imagens Quebradas é sobre uma contemporaneidade esfacelada em múltiplas faces: na língua, na imagem, no passado, na história, na memória, na escrita, na família. Para onde se olha, há imagens, um monte delas. Todas quebradas.
Não encontrei nenhuma montagem em português do espetáculo, mas tenho ela em inglês caso alguém tenha interesse. Há um trechinho dela no youtube. Veja aqui:
Sobre o Teatro do Mundo:
O projeto Teatro do Mundo é um mergulho no gênero teatral em busca de dramaturgias escritas (e nem sempre publicadas) ao redor do mundo. Todos as vezes eu sorteio um país, procuro uma peça dele e escrevo sobre ela. Sejam bem-vindos!