Estava eu conversando com o detetive particular Amadeu e ele contou uma história no seu jeito detetivesco sobre todo crime ser um caso de loucura. O que ele queria mesmo dizer era que toda violência é inesperada, já está no nome. Óbvio. E quase toda surpresa, penso eu, é um absurdo. Portanto, todo caso de loucura, como ele falou, se torna incomparável ao anterior se ignorarmos alguns detalhes; veja bem: estamos falando da estrutura da coisa. Lá pelo final dos anos 90, um grupo de adolescentes aparentemente normais, com cortes de cabelos normais, com suas camisas e jaquetas e calças jeans e tênis normais, seguiram pela Rua D’Alvorada num passeio — e apesar do nome da rua, era fim da tarde. Na direção oposta da calçada caminhava a Sra. Adelaide com suas sacolas de compras diária, por isso ia trôpega, arrastando a chinela, resmungando baixinho o quanto estava pesado. Os adolescentes continuaram reto e não abriram pra dar espaço algum, e a calçada era estreita, e na verdade, percebendo a situação, fizeram questão de jogar os corpos magros — mas suficientemente maiores que o dela — sobre a pobre coitada. Ela se estabacou ao chão. Só então pararam.
Ali houve algo que existe em todo ar do planeta, que faz gripar, existiu na gênese do mundo real e em toda terra mitológica. Existiu quando Cronos comeu os filhos, quando Goya fez Saturno, quando Abraão quase desceu a faca na cria; toda vez que o improvável gera violência — se fosse inglês, queria dizer violinos, as palavras se pronunciam iguais, ficaria mais bonito… Chamam de possessão. Os bichos acometidos por aquele torpor fizeram um meio círculo ao redor do corpinho franzino, sucumbindo já na dor da queda, dos ovos, leite e pães no chão. Ficaram rindo envergonhados no começo, depois soltaram-se abrindo a boca, grasnando, curvando-se de tanto rir, botando a mão na barriga. E tão logo conjuraram palavrões contentes. Tão logo iam uns pontapés arbitrários. Mataram a senhora Adelaide.
O engraçado — é nada, eu sei, perdoem — é o uso aqui dessa palavra arbitrário. Arbitrariedade significa ações ao acaso. Pensamos em dor, em algo inesperado e rimos, é só ver os Três Patetas; sabiam que eles realmente se machucavam? Comédia ainda é comédia, se for metalinguística? Não sei. Então se pensamos mais chegamos à conclusão meio-triste, meio-cruel de que qualquer quebra na rotina é surpresa, absurdo, violência.
A arte se move, vocês sabem, e ela anda feito doida. O absurdo dos dias é feito na hora que o povo está diante de situação inusitada, qualquer uma, pode ter qualquer maldade, qualquer loucura. Vocês percebem suspirando que loucura só cabe na arte. Cabe bem, digo, não é só jogar de qualquer jeito, tenhamos modos. Ela é necessária, afinal, precisa se reinventar sempre para manter a gente atento. Nos casos extremos dessa surpresa, no ápice da crise, a encontramos sádica, perversa, que dança no cadáver e procura novos vivos para assustar, violentamente a rir. A outra, n’outro polo, na direção oposta da calçada, a surpresa da simples rotina é estressada, genuinamente triste, toma café pelos olhos e ouvidos, corre nas escadas e cai, não olha ao atravessar a rua e é atropelada, atende o telefone só para ouvir que está atrasada no trabalho. Ninguém gosta dela. Comodidade é o que todo mundo quer, e João trabalha para dormir, Maria trabalha para morrer. Eu trabalho para você não ter que correr e ver esse tipo de situação na rua.
Sim, pois é, pitando o cigarro até o fim, o detetive Amadeu soprou a fumaça junto com a impaciência, com um desdém de quem sofre pelas porcarias do mundo e não se esquece de nada tão fácil. Era mais um ponto final para fechar — e a conclusão seguiu na seguinte fala:
— Às vezes, sabe, dá vontade de comer o cigarro em vez de acendê-lo… — esmagou a bituca com a sola do sapato. — Só pra quebrar a merda dessa rotina. Só pra não estourar os miolos de uns filhos da puta desses…
foto da capa: Acts of violence, por Gene Sogioka.