Esta resenha faz parte do Projeto Mulheres do Mundo – uma escritora de cada país, que é um desafio que coloquei pra mim mesma de ler um livro escrito por uma mulher de cada canto desse mundo. Pra conhecer os livros que já foram resenhados no projeto, clique AQUI!
Ler é ver um mundo que não vemos através das palavras. É construir imagens por meio da narrativa de alguém que pode ou não ter visto aquilo que narra, articular essa narrativa às nossas memórias e também à nossa imaginação. Por essa razão, ler “Sangue no Olho” é ver, pelo texto, a não-visão da personagem Lucina, essa “aprendiz de cega” que se depara com a gritante e urgente necessidade de aprender a não ver.
A rua não era um lugar, era uma multidão de ruídos se acotovelando e se apertando.
Em Sangue no Olho, Lina Meruane constrói a história de Lina Meruane — ela mesma e, ao mesmo tempo, uma ficção. Em uma narrativa atravessada por elementos autobiográficos que edificam uma história imaginada, a autora faz um brilhante estudo sobre a visão, as palavras, a escrita e o amor. Surpreendida por uma condição nos olhos, que se enchem de um sangue grosso e escuro que a impede de ver, Lucina, ou Lina, lida com o desespero de ver ruir tudo aquilo que conhecia e de se redesenhar toda a sua relação consigo, com as outras pessoas e com o mundo. Escritora, precisa parar de escrever; pesquisadora, precisa abandonar a tese de doutorado; leitora, precisa contentar-se com audiobooks; vidente, precisa transformar-se, aos poucos, em “cega profissional”.
Era imperativo ter um olho, ainda, pelo menos um olho para conferir se tudo estava certo, um olho perspicaz para compensar um olho cego. Porque o único olho vidente que eu ainda tinha parava de ver se eu me agitava: meu ir e vir levantava o sangue empoçado na retina, sacudia-o como um espanador, o escovão do movimento remexia-o.
Nascida no Chile, Lina morou em Nova Jersey, Estados Unidos, durante a infância, e mais tarde, na vida adulta, vai morar na cidade de Nova York, onde realiza sua pesquisa de doutorado e divide a vida e a casa com o namorado Ignacio. Distante da sua típica família de classe média latinoamericana, com suas neuroses típicas, Ignacio vai se tornando aquela pessoa que cuida de todas as demandas dessa Lina agora cega — ainda que não sem tensões, rusgas e desencontros. A doença se impõe sobre eles, sobre os amigos, e entre o cuidado e a obrigação pairam sentimentos de amor, culpa, desejo e ressentimento.
Mesmo antes da doença, Lina já tinha com o mundo uma relação ambivalente, buscando se enquadrar em algumas expectativas sociais sem conseguir exatamente se sentir parte da família, do seu apartamento, de tudo, sentindo não corresponder a essas expectativas, mandando às favas todas elas. Com o sangue no olho, parecem se aprofundar esses sentimentos de inadequação, angústia e raiva, ao mesmo tempo em que a esperança e o afeto se fazem presentes.
A casa estava viva, empunhava suas maçanetas e afiava seus ferros enquanto eu insistia em me apoiar em cantos que não estavam mais no mesmo lugar.
A condição de saúde de Lina é delicada e, em grande medida, incompreendida. Ela nos carrega pelos corredores do consultório médico do Dr. Lekz nas inúmeras consultas e avaliações. Seu prognóstico é instável: pode ser que o sangue seja absorvido pelo corpo, pode ser necessário uma cirurgia, pode ser que a cirurgia não resolva. Diante da imprevisibilidade dos desdobramentos da doença, Lina vai cada vez mais se obrigando a acatar como fato que está e provavelmente continuará cega, e irá precisar tanto de Ignacio e seus olhos quanto de sua própria memória para habitar o mundo.
Habitar o mundo pela memória narrada de uma Lina que não enxerga é uma experiência impressionante. A mesma rua que parecia mais um amontoado de gentes também é limpidamente visível pela memória. De carro com Ignacio, Lucina dá as indicações para se locomover por Santiago sem enxergar nada, usando apenas os “olhos da memória”. Passe por uma banca, por um sinal, por uma construção assim ou assado em uma esquina assim ou assado, vire a direita. Lina é um GPS memorial, que aciona imagens impossíveis de serem vistas mas que, ainda assim, são claramente reveladas diante de si.
Vendo-o ou não, é como se o tivesse visto: eu o construo em minha memória.
Assim, as cidades ganham novos contornos, assim como a ideia de “ver” se expande, se alarga — o que não significa que não ver seja pouco ou cotidianamente suportável. Mas, seja pela memória, seja pelos olhos alheios que tornam-se um pouco seus, especialmente os de Ignacio, o mundo se faz, e Lina se faz no mundo.
Vejo tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio.
De volta à Santiago de férias, os problemas e os desencontros familiares vêm à tona. Um pai que prefere não lidar com a realidade do mundo, uma mãe que na excessiva presença era preferível se fosse ausente, irmãos que vivem, cada um, suas próprias vidas. A família quer que ela faça uma operação no Chile, coisa que Lina nega e, portanto, cria inúmeras tensões na relação familiar.
O livro de Lina Meruane é um denso estudo sobre as relações humanas e sobre a doença. Ele nos convida a mergulhar em uma experiência sensorial de perder a visão que é, na realidade, um convite para refletir a respeito das bases que sustentam o que entendemos sobre nós mesmos e sobre os outros. Sua escrita não é em nenhum momento despropositada — como acontece com alguns textos contemporâneos que fazem uso de formas e modos de expressão que mais servem para mascarar a pouca qualidade do texto do que efetivamente potencializá-lo. Cada palavra é escolhida à dedo para infligir em nós, leitores, um sentido físico do mundo. Não é à toa que as descrições do sangue e dos procedimentos é incômoda; é como é para incomodar — e, pra mim, que tenho uma certa fobia de tudo que envolve o olho, foi particularmente incômodo, o que me lançou um desafio extra que, no final das contas, valeu muito a pena.
Mas a palavra amanhecer não evocou nada. Nada que se parecesse com um amanhecer. Meus olhos iam se esvaziando de todas as coisas vistas. E pensei que as palavras e seus ritmos ficariam, mas não as paisagens, não as cores nem os rostos, não esses olhos negros de Ignacio onde eu vira derramar-se um amor às vezes desconfiado, rude, ferino, mas sobretudo um amor aberto, expectante, cheio de miragens que as palavras cruzadas definiam como alucinação.
Há ainda uma outra dimensão no livro de Meruane que tem a ver com pensar a palavra e sua potência criadora de mundo. Uma escritora que escreve sobre uma escritora, ela-mesma-só-que-outra, que nos convoca a pensar o papel da literatura e do texto na produção do real. Como lançar mão das palavras quando nos faltam os olhos? O que pode a palavra diante do não olhar?
Não eram os fatos reais que me mobilizavam, mas as palavras, e era minha mão que empurrava as palavras, que construía e depois desfazia as frases para voltar a compô-las. Escrever era um exercício manual. Puro malabarismo.
Sangue no Olho é uma obra intensa, com uma narrativa veloz que, quando mais próxima do fim, mas vai ganhando ares de thriller, para culminar em um final de tirar o fôlego que em muitas coisas remete ao Natimorto de Lourenço Mutarelli. O amor e o terror que conjugam em uma só coisa, concomitantemente assombrosa e bela. Lina afirma que os olhos não renunciam, que sempre procuram outros olhos. Procuram sempre, também, outra forma de olhar, quando uma nos falta.