O que é literatura? A pergunta, certamente, não tem uma resposta fechada — e não seria eu, dentre todas as pessoas que já tentaram responder essa pergunta, aquela que teria a resposta correta. Mas após a leitura de “A história dos meus dentes”, da escritora mexicana Valeria Luiselli, fica menos difícil para mim arriscar que, qualquer que seja essa resposta, literatura definitivamente tem a ver com invenção e imaginação.
“A história dos meus dentes” conta a história de Gustavo Sanchez Sanchez, conhecido como Estrada e autoproclamado o maior leiloeiro do mundo, mesmo que, por sua discrição, ninguém saiba disso. Sua missão de vida é uma e apenas uma: trocar todos os seus dentes. Nascido com a peculiar condição de ter quatro dentes pré-natais, Estrada vê o mundo através dos dentes — seus, dos outros. “Os dentes são a verdadeira janela da alma”, ele garante. E, por mais absurda que pareça ser a premissa dessa história, vamos aos poucos sendo compelidos a concordar com Estrada. Podemos, sim, conhecer o mundo através dos dentes. Isso porque podemos conhecer o mundo através de qualquer coisa. Que sejam os dentes, então, aquilo que vai nos fazer debruçar sobre nós e sobre os outros.
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Morador do município de Ecatepec de Morelos que trabalhou por décadas como segurança de uma museu de arte em uma fábrica de sucos, Estrada está acostumado a fazer um sem número de cursos de todos os temas possíveis e imagináveis, e um dia se dá conta de que tem as qualidades necessárias para tornar-se leiloeiro. Melhor ainda, com a renda que essa nova profissão lhe traria, seria capaz de trocar seus dentes, realizando, assim, sua missão. Ele sai, então, em busca de seu sonho, fazendo uma formação em leilões com o brilhante mestre Oklahoma e viajando o mundo estudando e aplicando a complexa ciência de leiloar.
Existe em todo homem uma propensão natural para ampliar ou atenuar o que vê à sua frente, e ninguém se contenta com a verdade exata.
Desenvolvendo métodos próprios, Estrada se torna um brilhante leiloeiro, capaz de realizar leilões dos mais diversos: hiperbólicos, elípticos, circulares, parabólicos, alegóricos… cada tipo de leilão exige de Estrada habilidades específicas; em comum, todos têm o fato de que leiloar nada mais é do que re-contar histórias. Encontrar uma forma — hiperbólica, alegórica, o que seja — de oferecer novas camadas e valores às histórias contidas em cada objeto leiloado. Em um leilão, não se compra algo, mas aquilo que esse algo conta contado por alguém que soube contar o melhor do que há para ser contado.
O que os leiloeiros leiloam, no fim das contas, são apenas nomes de pessoas, e talvez palavras. Tudo que faço é dar-lhes um novo conteúdo.
O comprometimento de Estrada com os leilões tem relação direta com seu interesse nas histórias e vidas alheias, por ele vistas como raros objetos que contêm em si todo um mundo a ser explorado. Seu amor pelos objetos e pelas palavras é equivalente.
Eu não era um vil vendedor de objetos, e sim, antes de mais nada, um amante e colecionador de boas histórias, que é a única maneira realmente honesta de modificar o valor de um objeto.
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A estranheza da história e a personalidade divertida de Estrada arrancam do leitor risadas que misturam diversão, desconforto e estupefação. “Estou mesmo lendo um livro sobre dentes?” foi uma pergunta que me fiz mais de uma vez enquanto passava as páginas. A resposta a essa pergunta é, concomitantemente, sim e não. Sim, é uma história sobre dentes. Sobre um homem fissurado por dentes em busca dos dentes perfeitos para sua própria boca e que, neste trajeto, descobre e redescobri a si mesmo em um profundo processo de autoconhecimento. E não, não é uma história sobre dentes, mas sim uma história sobre histórias. Como leiloeiro, Estrada é um contador de histórias. E o encontro entre um personagem contador de histórias e uma escritora contadora de histórias produziu um dos livros mais inesperados, inusitados e incríveis que existem.
A relação de Estrada com os dentes, os objetos e as histórias nos convoca a pensar naquilo que nos faz sermos quem somos; nos pequenos pedaços de história e mundo e coisa que nos faz olhar no espelho e dizer “sou eu”. É um convite para que também nós capturemos o valor da história das coisas. E é também uma chamada para que olhemos o mundo para além daquilo que o olho vê — não porque há algo “por trás”, mas porque há tanto em cada pequena coisa, visível, esperando apenas ser olhado com olhos dispostos.
Quando Estrada começou a me contar suas histórias, cheguei a pensar que ele fosse um mentiroso compulsivo. Mas, depois de viver com ele, percebi que tinha menos a ver com mentir do que com superar a verdade.
Estrada diz que “as melhores melhores ideias, assim como os melhores objetos, são simples”. Valeria Luiselli parece concordar com seu personagem. Este é um livro que aparenta ser simples, mas que se constrói de inúmeras camadas, inclusive uma que o coloca em diálogo constante com algumas das maiores produções literárias de todos os tempos. “A história dos meus dentes” é o livro mais esquisito do mundo, e por isso um dos melhores. Um livro que se apega àquilo que faz da literatura o que ela é: pleno exercício de reinventar e imaginar um mundo que, nos choques e encontros com o mundo “real”, nos dê o fôlego de que precisamos para fazer um outro real — se não melhor, mais habitado, com mais histórias, mais trocas e mais leveza.
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