Compreender o mar é, talvez, uma das maiores tarefas humanas. Embora a gente tenha, ao longo dos séculos, dominado as viagens aéreas e, inclusive, o espaço, o mar continua sendo uma das grandes forças incontroláveis e misteriosas pra humanidade. O medo do mar, o fascínio pelo mar, o respeito em relação ao mar e, por fim, uma espécie de reverência aos mistérios do mar marca a humanidade desde, por exemplo, os relatos da Ilíada e da Odisséia de Homero, passando pelas grandes navegações dos Lusíadas, de Camões, chegando ao começo do século XX, especificamente em 1904, com o lançamento de O Lobo do Mar, de Jack London.
No entanto, escrever sobre o mar coloca em questão também uma missão que é: como dar a ver a estrutura e os movimentos do mar em sua escrita para que sua obra não seja apenas sobre o mar, mas, de certa forma, dê a própria formação do mar? E esta parece que é grande característica de London, apresentar e materializar o mar em suas diversas faces espalhando-o em suas multiplicidades na sua linguagem, na sua narrativa, nas suas personagens e, inclusive, em seus arroubos, elipses, potencialidades e vazios. Neste sentido, O Lobo do Mar é um romance escrito em suas errâncias, no isolamento da narrativa do resto do mundo e na justaposição de forças claustrofóbicas por uma geografia curta. O mar, em O Lobo do Mar, é imenso, sem destinos, sem setas, a vida, porém, é intempestiva e curta.
Tenho dois exemplos particularmente curiosos para dar a ver as feições do mar no livro. O primeiro está em como Jack London opta por começar o romance: “Não sei por onde começar”, diz ele e apresenta um começo de romance quase como uma fábula, um barco, com um grande nevoeiro ao redor em que um homem com uma perna de pau se aproxima anunciando uma catástrofe. Esta sinceridade e até ingenuidade narrativa não é fortuita. Na verdade, aparenta que Jack London está tentando traçar o mar, cartografá-lo e, por isso, percebe que, diante do mar, é sempre impossível começar, pois não há começos, não há linhas nem princípios, um mar é uma eterna origem. Ele começa onde começamos. Para mim, nesta resenha, a tarefa é a mesma: como começar a falar desse livro? Interrompendo meus exemplos com uma breve sinopse. Ei-la.

Apenas para dar a ver aquilo que trago nesta resenha, podemos dizer que O Lobo do Mar é um livro que conta a história de um sujeito de uma alta classe, um gentleman de profissão, como ele mesmo se nomeia, que passa por este naufrágio profetizado pelo homem da perna de pau e é resgatado por uma embarcação de caça de focas, o barco “Ghost”, comandado pelo capitão Lobo Larsen, um homem forte, imponente e impiedoso que trata todos através do seu abismo de força. Logo no primeiro momento, Larsen coloca este intelectual de burguês de nome Humphrey van Weyden para trabalhar na cozinha e transforma-o em mais um servo seu. O romance, então, passa por uma série de aventuras em torno da intelectualidade metafísica de Humphy e a visão de mundo materialista de Lobo Larsen. Como limite geográfico, o barco, porém, com desfazimento de uma espacialidade, um horizonte de mar.
Voltando aos meus exemplos, o segundo deles está quase no final do livro quando, em determinado momento, a única personagem feminina do romance, Maud, cita uma poesia que faz referência e, provavelmente, tenha motivado London a dar o título ao livro. Antes, é preciso que se diga que o romance inteiro é entremeado pro discussões filosóficas e referências a poesias, principalmente a Robert Browning, o poeta e dramaturgo inglês do século XIX que escreveu um longo poema em referência a personagem A Tempestade de Shakespeare, o Calibã, por sinal, uma figura que habitava uma ilhada para onde as personagens vão após um naufrágio. Browning, ao que parece, inspira London na sua busca de sentido das coisas, porém não um sentido estrito, direto, mas um sentido dialógico, dialético, que entrecruza uma série de visões múltiplas do mundo, entre a visão cristã de corpo e alma, até recortes de classes entre uma classe alta e a classe dos marinheiros. Atravessando e cruzando todas estas visões, ele assume a tarefa de Browning que dizia que ” A vida tem uma significação e o meu dia a dia é procurá-la” e o faz através da busca de reencenar a humanidade nos limites das forças do mar. Bom, e a poesia que Maud fala e que dá o título do livro, ao contrário da presença de Browning, cita o seu oposto, uma poesia que, de repente, se faz sem memória, sem autoria, sem dono, como o mar: “Quando a faca nos dentes, o lobo do mar desemaranha o cordame…” Interessante, não?

E esta constante disputa de forças, esta dialética daqueles que vivem no mundo, se expressa através da filosofia de vida de Lobo Larsen, que muitos estudiosos apontam como advinda de uma filosofia que inspira-se de um lado, em Nietzsche, talvez de Schopenhauer, uma vez que o próprio autor cita ambos nas primeiras linhas do romance e, de outro lado, nas teorias de Darwin. Trata-se da teoria da vida como uma espécie de levedura em que cada ser vivente busca crescer, evoluir e se multiplicar na vida, ao mesmo tempo, em que a vida faz de tudo para ela própria se manter viva, ignorando as vidas individuais de sujeitos e seres vivos, incorporando inclusive um mecanismo de vida que se dá tal como na fermentação das leveduras: é a ingestão de uns seres sobre outros que se sobrevive, ou seja, que a vida se determina justamente pelo seu contrário, pela tarefa de devoração constante de uns sobre os outros. E isto não é uma filosofia meramente do plano do pensamento, é visto em sua visão mais prática: o fermento cresce, ou seja, a vida se expande quanto mais estamos abertos para a devoração de outras vidas. Em determinado momento, diz Larsen:
Penso que a vida é uma confusão, respondeu ele de pronto. A vida é como o fermento, uma levedura que se move por um minuto, uma hora, um ano, um século, um milênio, mas que por fim terá paralisado os movimentos. Para manter-se em movimento, o grande come o pequeno. Para manter-se forte o forte come o fraco. O que tem sorte prolonga o seu movimento por mais tempo – eis tudo.
E, apontando para os marinheiros, completa:
Eles movem-se, tal qual a água-viva. Movem-se para que possam comer, e comem para manterem-se em movimento. Eis tudo. Vivem por amor do estômago e o estômago neles funciona para mantê-los em vida. É um círculo vicioso. Não conduz a nada. Ao cabo de certo tempo, paralisam-se. Cessam de mover-se. Morrem.
A água-viva, o animal e o mar como vivente como metáfora da vida. Esta vida como levedura, então, significa não só uma brutalidade de pessoas sobre pessoas, mas em um contexto sócio-politico, uma dominação de uma classe sobre outras. Larsen logo de cara pergunta a Humphrey do que ele vivia e o rapaz não sabe responder. Larsen responde-o dizendo que este vive do trabalho dos outros, alguém faz todo o serviço que lhe promove todo o seu sustento, assim, a teoria da levedura, além de antecipar um caráter antropofágico para entender a vida nesta escrita de mar, dá a ver este gesto antropofágico também como uma política da vida.
Para finalizar, e evitando o máximo trazer um spoiler, logo ao fim do livro Humphrey se vê na necessidade de reconstruir um barco para retomar os caminhos do mar. Creio que, no fim das contas, Jack London anuncia nesta necessidade desta personagem que, ainda inserido num romance de aventuras, coloca a mão na massa para construir o próprio meio de transporte de suas aventuras, a própria escrita de seu romance. Enquanto Humprey constrói o seu barco para novamente navegar ao mar, London escreve seu romance para dar a ver o seu mar da vida nas misturas entre filosofia e arte marítima, entre navegar e escrever, entre pensar a vida e viver a vida. No fim, retomar o sem caminhos do mar, o seu caminho do mar que, outrora não sabia começar e que, por fim, também não sabe como terminar. Para o fim do mar, escolhe um caminho clichê de quem busca navegar a vida: o ato de amar.