Uma das coisas mais estranhamente viscerais que experiencio quando trabalho de casa é observar meu gato. A incapacidade do animal em desprezar minhas ações e movimentos me colocam direto com um enigma de impossível resolução. Enquanto eu trabalho, ele mansamente dorme, como se fosse um ser cruel diante do meu mundo de repetição. Talvez seja por isso que muitos de nós opta por humanizar o bicho, dar a ele características próximas da gente e compreendê-lo a partir da gente mesmo. No entanto, acredito que é justamente a visceralidade desta vida intocável que nos coloca diante de um abismo perante a vida.
Foi por este caminho que adentrei no espetacular filme Cavalo de Turim (2011), do húngaro Bélla Tarr. O filme conta a história de pai, filha e um cavalo que vivem em um lugar ermo e, diante de uma tempestade de ventos, se veem diante da repetitiva rotina e intensa experiência de um presente que se repete. A imagem que trago para pensar este texto é de uma cena específica: um pai, ao tentar montar em sua carroça, se vê diante de um cavalo que empaca e se rejeita a se mexer. Por mais que seja açoitado o bicho é absolutamente intransigente ao seu gesto de não movimento, abrindo uma vala, um poço diante daquela experiência limite de vida: sem o movimento, o que resta é o gesto, é a repetição como acolhimento, é a busca incessante de algo que, mesmo que não se mova, expresse um semblante de vida.
A imagem deste é cavalo é particularmente interessante na medida em que somos apresentados, ainda no prólogo do filme, a uma parábola que representa um episódio da vida do filósofo Friedrich Nietzsche. Conta ela que um dia, após sair de casa por um motivo qualquer, Nietzsche encontrou um cocheiro espancando um cavalo que, tal como no filme, resolveu não andar. Nesta parábola, Nietzsche interrompeu os maus tratos e abraçou o animal, mas no dia seguinte foi tomado pela loucura, perdendo o último traço de razão. A história termina dizendo que, ao contrário de Nietzsche, “do tal animal, nada se sabe”.
É neste momento que quero dar um salto e apontar para um clássico do universo infantil. Um dia, sem nada para pesquisar na internet, digitei aleatoriamente cavalo e fui levado a até este vídeo. Trata-se da música Cavalo Verde, parte do dvd A Fazenda do Zenon 2. Nela, temos um cavalo verde saltitante e feliz em uma fazenda igualmente colorida, ao contrário da fotografia escura e claustrofóbica de Bélla Tarr. O cavalo, que não canta, ouve uma música sobre sua vida que diz:
“Eu tenho um cavalo verde
Que faz acrobacias sabe
Escovar os dentes e anda
De bicicleta (…)
Eu ensinei ele a falar sabe dizer mamãe
E é tão inteligente que ate usa óculos pra poder olhar (…)
A sua namorada é loira e muito vaidosa pinta a boca
De vermelho e é muito mandona e quando ela vê o cavalo
Ela lhe diz tenho vontade de te comer você parece
Um cheiro verde”
Veja o vídeo completo aqui:
Quero destacar na música duas coisas: a primeira é como ela não possui uma rima em nenhum de seus versos, como se a canção do cavalo fosse uma espécie de gesto de anarquia diante da canção integrante do dvd do Zenon. A segunda é a tentativa desesperada de dar ao cavalo um espaço absolutamente humano e controlado que não é o seu: uma fazenda onde se faz acrobacias, escova os dentes, anda de bicicleta, aprende a falar mamãe e, inclusive, tem uma namorada mandona. Além disso, a completa retirada dele do gesto da radicalidade animal, ou seja, a força que enquanto se tenta humanizar se retira todos os seus traços de possibilidade de vida, de rebeldia, de negação ao gesto da parábola e de Bella Tárr: a decisão individual, ainda que animal, de dizer não.
E vejo no gesto de Bélla Tarr justamente a tentativa de recompor isto: o seu cavalo de Turim é aquela que nega carregar seus donos, nega se alimentar, nega beber água, ou seja, aquele que pode negar a própria natureza, mesmo que esteja indo de encontro à sua animalidade mais intensa: só ele, diferentemente do pai e da filha, se recusa a repetir, se recusa à uma vida que não diz outra coisa que não a si própria. Tal como um fascista, o pai diante da filha chega a dizer: “coma, precisamos comer”, tal como se dissesse: “viva, antes de tudo é preciso viver”. Já o cavalo diz “não, assim não, é preciso viver, mas outra vida”. Não é a toa que Bélla Tarr em diversos momentos abandona suas personagens e nos fazer ver por dezenas de segundos uma camisa lavada, uma garrafa de aguardente na mesa, uma porta: tudo invenções humanas, criações utilitárias que, diria Nietzsche, nos afasta da vida.
O que encontra Bélla Tarr é, talvez, a profundidade do gesto de Nietzsche: encontrar a vida é encontrar o limite de abismo, o impossível diante dos possíveis, o tal amor fati, não naquele pensamento niilista que se contenta com o destino e operacionaliza-o para o futuro, mas um fati que, diante do destino joga com ele e intensifica-o ao máximo no presente. Estamos diante de um cavalo como experiência, uma animalidade didática, que ensina. É que a vida, talvez, só possa se dar no saltar, como um cavalo, de abismo em abismo.
Veja o trailer do filme aqui: