Responsável pela adaptação religiosamente precisa de Orgulho e Preconceito para a BBC em 1995 e a criação da série House of Cards, Andrew Davies é um nome de peso na televisão e cinema britânicos. Expoente em adaptações literárias, Davies levou às telas, em formato de mini-série, Middlemarch (1994), Vanity Fair (1998), Doutor Jivago (2002), A Abadia de Northanger (2007), Uma Janela Para o Amor (2007), Razão e Sensibilidade (2008) e, recentemente, aventurou-se por Tolstói em Guerra e Paz, lançada em janeiro desse ano para a BBC.
Guerra e Paz, por sua vez, foge do padrão dos clássicos que Andrew Davies costuma adaptar – uma história de mais de 1200 páginas na versão original, filosófica e psicologicamente densa e, não menos importante, russa. A invasão de Napoleão no território russo e como ela afetou a vida da luxuosa aristocracia é a temática central do romance de personagens distintos. A começar pela ausência de um herói que englobe as características mais comuns dessa “posição”, com Pierre Bezukhov, sujeito bondoso que pouco se encontra na vida nova de conde, desajeitado social e impetuoso. Na busca por uma vida ética que repare seus erros do passado, Pierre é um herói moral, angustiado pela guerra e seu papel influente no destino de seus companheiros.
A série destaca-se por ser uma adaptação com personalidade, não hesitando em retratar nuances muitas vezes despercebidas na obra de Tolstói (como o relacionamento de caráter incestuoso entre Hélène e Anatole Kuragin). Apesar da grandeza da guerra abordada, detalhe que requer cara produção e, por vezes, diminui a originalidade de seus personagens, a versão da BBC maneja sua narrativa com o objetivo de mostrar a guerra como onipotente força, responsável por levar o destino que cabe aos seus personagens – e não um evento glorioso que coroa os soldados de honras e rende belas sequências de cena. Para a aristocracia russa em questão, desavisada da crueldade, a guerra era uma válvula de escape da libertinagem e do fastio.
A guerra não é vista pelos olhos de Pierre, tampouco pelos de Natasha Rostova, protagonista feminina complexa e jovem do romance. Amigos desde a infância, Pierre vê em Natasha a vivacidade e benignidade que assume faltar em si. Natasha, por sua vez, amante de música e dança, cresce também desenvolvendo gosto pelas paixões (sem necessariamente censurar-se por isso). Seu irmão, Nicolaj, parte para a guerra sem prometer se casar com Sonya, sua prima órfã e paixão desde a infância, fazendo com que Natasha se dedique para que a união entre os dois não seja desfeita, mesmo sem compreender como a situação econômica da família dependia de um casamento rentável e como a guerra não existia apenas para deixar homens feridos – ela muda o curso da história.
Ao longo dos eventos, faz de sua falta de discernimento entre amor e luxúria sua ruína, valorizando uma paixão fugaz acima de sua conexão amorosa com o amigo de Pierre, o príncipe Andrei Bolkonsky. A história de Natasha é a história do amor em suas diversas aparições e intensidades. A guerra, em seu arco, chega como a encarregada de fazer seu antigo pretendente perdoar a traição ao ver seu inimigo tendo a perna serrada após a batalha sangrenta de Borodino. O contexto maior que a guerra exige ser refletido força os perdões dos personagens: Andrei perdoa Anatole e Natasha, Pierre perdoa a esposa Hélène e o amigo Dolokhov pelo antigo envolvimento, Sonya perdoa Nicolaj por decidir-se não se casar com ela, Marya, irmã de Andrej, perdoa Natasha ao ver o irmão em seu leito de morte, etc. Pernas sendo serradas, sangue, bombas, em síntese, a morte – ela traz o perdão que tememos dar em vida.
A despeito do sotaque britânico e das semelhanças com qualquer obra georgiana adaptada para a televisão, Guerra e Paz traz elementos culturais relevantes da Rússia, como as danças (em sequências radiantes de Natasha em sua casa) e a influência da França na expressão linguística dos mais ricos. A imprecisão da série, porém, se manifestou no figurino e, para alguns críticos, na linguagem corporal de certos personagens (que seria considerada inadequada para o começo do século XIX). Outro fator alvo de objeções de telespectadores russos é a sexualidade abertamente presente na mini-série, que é investida de maneira menos “gráfica” na obra de Tolstói. Entretanto, o desejo dificilmente trabalha como coadjuvante na história – os adultérios de Hélène, a devassidão de Pierre no princípio de sua riqueza, e atração de Natasha por Anatole são eventos que alteraram a vivência dos personagens. O que se decorreu das guerras napoleônicas e os desafios enfrentados por cada um são obras de um determinismo, fazendo que as batalhas fossem encarregadas do futuro de todos, mesmo que indiretamente.
Tudo está à flor da pele quando sangue é derramado nos campos de batalha, quando sua mulher engravida fora do casamento, quando uma família aristocrática perde a fortuna, quando uma jovem desperta sua sexualidade, quando a paixão arrebata e Napoleão pretende pintar Moscou de outra cor. O meio-termo entre a guerra e paz são todos os outros dias, quando algumas palavras não são ditas e amadurecem para criar o caos. A paz foi criada para suceder a guerra, uma utopia de que tudo vai caminhar para a felicidade se os seus inimigos restarem desmembrados nas florestas da Rússia. Todavia, Guerra e Paz ensina que aquilo que incita a guerra também é capaz de ser perdoado quando ela entra em cena, transformando pessoas em memórias.