[Sem spoilers (pelo menos de verdade)]
Elena Ferrante é um sucesso na mesma medida que um mistério. A autora italiana, cuja identidade não é divulgada, consolida-se, desde os anos 90, como um belo suspiro na literatura. Sua voz literária parece se encontrar, principalmente, no contar sobre a vida de mulheres napolitanas como mães, amigas, intelectuais e, principalmente, entidades psíquicas de muita fortaleza. No seu primeiro romance Um amor incômodo, um bom prenúncio da que seria sua maior obra – a tetralogia de
Retorno às origens
A amiga genial –, é narrado um episódio da vida de Delia, que, ao precisar enterrar a sua mãe, precisa também se reconectar com figuras do seu passado. O retorno necessário às origens, sempre penoso e reverberante, e o laço entre mãe e filha – ou entre a mulher e uma outra –, num estreitamento muitas vezes sufocante, são centrais nos romances da sua tetralogia napolitana, os romances A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem foge e quem fica e História da menina perdida.
Uma série falada em italiano
A HBO e produtora italiana Rai, que possuem os direitos para a adaptação da série de Elena Ferrante, lançou a série baseada no romance A amiga genial (lançada no Brasil com o nome de My Brilliant Friend). Com esse ato da HBO, que alcança audiências mundiais, só é reforçado o grande fenômeno da escritora italiana que escreve boa literatura e é líder de vendas, simultaneamente. Agora, sua história ocupa as telas e pode ser contada para aqueles que, como muitos de seus personagens, não seguiram os estudos e não leriam seus romances. Nas mãos do diretor Saverio Costanzo, que é também co-autor do roteiro com Laura Paolucci, Franceso Piccolo e a própria Elena Ferrante, vemos os personagens de papel tomarem uma forma fiel ao espírito da narrativa de Ferrante. É uma série brutal, apesar de delicada. Potente, apesar de silenciosa. Descolorida, apesar de profundamente manchada pelo sangue esquentado de seus personagens mais relevantes.
Uma história sobre amizade
A história da amizade entre Elena Greco (Lelu) e Rafaella Cerullo (Lila), habitantes da periferia de Nápoles, nos anos 40, eclipsadas pelos ofícios de seus pais (os homens que fazem o bairro), inicia-se na escola. Elena, a que narra, era uma aluna exemplar ainda quando criança. Observadora e tímida, já identificava em Lila, uma criança geniosa, uma grande potência para destruí-la naquilo que pouco (achava) dominava – os estudos. Lenu então aproxima-se assim da despudorada menina que a desafiava e a respeitava, estreitando um laço que perdurará todas as etapas de suas vidas como mulheres, condicionadas sempre pela brutalidade cultural do bairro napolitano de onde vieram.
Um roteiro fiel ao livro
Com a trilha de Max Richter, as interpretações de Lila e Lenu (por Gaia Girace, Margherita Mazzuco, Elisa del Genio e Ludovica Nastia), a fotografia lenta, o roteiro fidelíssimo, a produção da HBO faz com a televisão o que Ferrante também fez com a literatura – traz um olhar delicado para a brutalidade, seja esta a do bairro de Nápoles, com sua misoginia, seja a da própria amizade entre Lila e Elena, com suas convulsões e aquietações num pano de fundo extremamente opressor. A princípio, pode parecer até um determinismo que negligencia a subjetividade. No entanto, o olhar sutil e cirúrgico de Elena (Grego ou Ferrante), que se intermedeia também o olhar incendiário de Lila, para aquela realidade visceral das famílias napolitanas, e principalmente das relações de poder, traz uma compreensão que, apesar de bem-localizada, não despreza seu caráter ímpar.
Contra as violências de gênero
Como meninas que parecem estar fadadas a viverem como suas mães, como donas de casa violentada pelos maridos e pelas circunstâncias, Lila e Lenu decidem transgredir nas suas possibilidades. Lila, na família – Lenu, nos estudos. A série, talvez por trazer a autoria de Ferrante, traduz o mesmo ritmo e a mesma peculiaridade narrativa da madura Elena Greco – talvez arrastado e denso demais para a televisão, mas que alcança profundamente os leitores dos romances e pode interessar aqueles que ainda não os leram. Apesar da violência contra o gênero feminino na sua forma mais explícita, da qual ainda vivenciamos (infelizmente, não tanto como resíduos) nesse século XXI, a amizade entre Lenu e Lila transforma-se numa bela e complexa forma de resiliência no cenário em que se encontram. Ao final, a amiga genial torna-se um adjetivo que cambia entre as duas mulheres, não uma definição estrita de uma delas. A grande capacidade mentais dos geniais e geniosos pode causar terremotos, como os de Lila, mas também pode ressignificar o mundo e sua violência pelos detalhes silenciosos, como faz Elena – Greco ou Ferrante.