Clarice Lispector, além de uma das maiores vozes literárias brasileiras, também produziu um jornalismo excepcional, que só sua sensibilidade poderia criar. Em diversas entrevistas com intelectuais e escritores brasileiros, sua personalidade transparece na simples formulação das perguntas, no interesse pelo profundo do cotidiano.
Já foi publicada aqui no Notaterapia uma entrevista belíssima de Clarice com Pablo Neruda. Na seguinte seleção, e retiradas do livro Entrevistas (Editora Rocco), estão as falas mais marcantes de entrevistantes como Lygia Fagundes Telles, Fernando Sabino e Jorge Amado sobre seus processos de escrita e, claro, o significado disso tudo.
Erico Veríssimo
Clarice Lispector: Quando foi, Erico, que você começou a escrever? E motivado pelo quê?
Erico Verissimo: Em menino, na escola, eu fazia “primorosas” redações. Grau dez. Foi ainda em Cruz Alta, atrás dum balcão de farmácia, que escrevi o primeiro conto. Por quê? Não sei. Aí me lembro que naquele tempo eu ainda pensava que podia ser pintor (acabo de comprar uma caixa de tintas. Pintores do Brasil, alerta!). Meu primeiro livro de histórias – Fantoches – ainda leva a marca de minhas leituras da época: Oscar Wilde, Bernard Shaw e o infalível Anatole France.
C.L.: Sua fama é enorme, Erico. Se eu fosse famosa assim, teria minha vida particular invadida, e não poderia mais escrever. Como é que você se dá com a fama? Eu soube que o ônibus de turistas em Porto Alegre tem como parte do programa mostrar sua casa.
Erico Verissimo: É claro que a “fama” tem um lado positivo – a sensação de que a gente se comunica com os outros passa a existir para milhares de leitores. Não só como autor, através dos personagens, como também como uma espécie de figura mitológica. É engraçado. Essa história do ônibus me encabula muito. Mas eu cultivo a virtude da paciência. E detesto decepcionar os que me procuram, os que me querem conhecer em carne e osso. Minha casa vive de portas abertas. Há noites em que temos de dez a vinte visitantes inesperados. Todas as semanas recebo dezenas de estudantes que querem entrevistar-me, e a gama vai do curso primário ao universitário. Pessoas com casos sentimentais me procuram para desabafar. Empresto-lhes o ouvido, o olho, e não raro uma afetuosa atenção. Frequentemente consigo ajudar realmente um ou outro “paciente”. E isso me alegra. Mas pelo amor de Deus, Clarice, não pense nem deixe que seus leitores imaginem que eu me levo a sério.
Ferreira Gullar
C.L: Gullar, vou lhe fazer uma pergunta muito difícil que eu mesma não saberia como responder. É o seguinte: como nasce, em você, o poema, a palavra escrita?
Ferreira Gullar: Em mim o poema quase sempre é provocado por um choque emocional qualquer. Por exemplo, quando escrevi o poema sobre o Vietnã, a coisa se deu do seguinte modo: eu acordei, comecei a ler o jornal com suas tremendas notícias sobre a guerra. À porta de minha casa havia uma feira. Quando vi aquelas pessoas se dirigindo para as suas casas, com as cestas carregadas de verduras e frutas, deu-se o choque. Eu pensei: se fosse no Vietnã aquela senhora poderia encontrar a sua casa em chamas. Eu próprio havia marcado para sair de férias, um mês depois. Pensei: num país em guerra deve ser impossível planejar a vida, marcar férias, ir ao cinema, tudo pode ser desfeito de um momento para o outro. É a insegurança total. O choque emocional já por si provoca as palavras, eu em geral não me preocupo em escolhê-las, elas jorram.
Fernando Sabino
C.L.: Como é que começa em você a criação, por uma palavra, uma ideia? É sempre deliberado o seu ato criador? Ou você de repente se vê escrevendo? Comigo é uma mistura. É claro que tenho o ato deliberador, mas precedido por uma coisa qualquer que não é de modo algum deliberada.
Fernando Sabino: A criação nunca começava por uma palavra ou por uma ideia. Era uma espécie de sentimento em mim que partia em busca dessa palavra ou dessa ideia. Qualquer palavra, qualquer ideia. Hoje o sentimento ainda existe, mas tem-se dispensado de se exprimir através de palavras ou ideias – de certa maneira me contento com o próprio sentimento, que procura fora de mim alguma forma de expressão já existente com que se identificar. A música, por exemplo – especialmente a de Thelonious Monk.
C.L.: Fernando, você tem medo antes e durante o ato criador? Eu tenho: acho-o grande demais para mim. E cada novo livro meu é tão hesitante e assustado como um primeiro livro. Talvez isso aconteça com você, e seja o que está atrapalhando a formação de seu novo romance. Estou ficando impaciente à espera de um romance seu.
Fernando Sabino: O que atrapalha a criação de um novo romance é a presunção de que somos capazes de criar. Diante da grandiosidade da tarefa, descubro que não sou coisa nenhuma. Era preciso partir da consciência de minha própria insignificância, e reconhecer com humildade que a tarefa nem grandiosa é, mas apenas um ato de louvor a Deus na medida das minhas forças.
Lygia Fagundes Telles
C.L.: Como nasce um conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?
Lygia Fagundes Telles: São perguntas que ouço com frequência. Procuro então simplificar essa matéria que nada tem de simples. Lembro que algumas ideias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A ideia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente. Tem passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trapézio voador que avança e recua no espaço: tanta luta, tanto empenho que não exclui a disciplina. A paciência. A vontade do escritor de se comunicar com o seu próximo, de seduzir esse público que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham) que ao menos fique a alegria de criar.
C.L.: Para mim a arte é uma busca, você concorda?
Lygia Fagundes Telles: Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já estava morto antes. É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que desprezam o estilo, que não trabalham em cima do texto porque acham que logo no primeiro rascunho já está ótimo, tudo bem – a esses recomendo a lição maior que está inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade:
Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?
– Você, Clarice, que é dona de um dos mais belos estilos da nossa língua, você sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave não é assim simples. Nem fácil, há tantas chaves falsas. E essa é uma fechadura toda cheia de segredos. De ambiguidades.
Jorge Amado
C.L.: Quando você está escrevendo, espera pela inspiração ou trabalha com disciplina, tantas e tantas horas por dia?
Jorge Amado: Inspiração? Inspiração para mim é a ideia, é o amadurecimento interior – eu prefiro a palavra vocação: você nasce ou não para escrever, e acabou. O trabalho só não basta. Mas o trabalho é essencial, fundamental e deve ser disciplinado. Levo anos sem fazer nada – quero dizer, sem estar na máquina a bater as páginas de um livro: durante esse tempo estou concebendo a ideia do romance – a isso chamo de inspiração. Depois vou para a máquina e trabalho com muita disciplina, “tantas e tantas horas”. No momento, por exemplo, acordo às cinco da manhã, antes das seis já estou na máquina e trabalho até às 13 horas. Almoço, descanso, atendo minha secretária, às 17 volto ao trabalho até as 19, exceto aos sábados e domingos, quando não cumpro o horário das 17 às 19 horas e passo a tarde jogando pôquer ou conversando com amigos.
C.L.: Você é tão hábil em escrever, que se lhe dessem um tema você aceitaria? Ou o tema tem que nascer de você mesmo?
Jorge Amado: Nunca aceitei encomenda nem penso em aceitá-las. Apenas uma vez deram-me um tema: conto destinado para um livro Os Dez Mandamentos, onde colaboram mais nove autores. O editor deu-me o tema para a história e eu aceitei escrevê-la. E a encomenda, pois cumpro meus compromissos, foi uma das piores coisas que escrevi. Sou um escritor profissional, porque escrever livros é minha profissão, e não um hobby, um bico ou uma “ocupação fundamental…” de fim de semana. Sou, assim, um escritor comercial. Escrevendo meu quarto livro num espaço de tempo de 12 anos, ou seja, em média um livro de quatro em quatro anos. Quisesse eu escrever para ganhar dinheiro e, com o público que possuo, era livro de seis em seis meses, sobretudo se sou realmente “hábil” como você diz. Só escrevo aquilo que nasce e cresce dentro de mim.
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