[Publicado por Lucinda Canelas em Público.pt]
[O texto a que o PÚBLICO teve acesso, e que neste artigo se traduz livremente, é a versão inglesa feita pelo German-Canadian Centre for Innovation and Research a partir da alemã, por sua vez transcrita do original grego.]
Marcel Nadjari, um judeu grego que servia no Exército, chegou ao complexo de campos de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau em abril de 1944, depois de uma viagem de dez dias. Tinha 27 anos e fora capturado pela SS em Atenas. Dois anos antes, os seus pais e a sua irmã também tinham sido deportados para o mesmo complexo. Nadjari não chegaria a vê-los.
Ao chegar ao Sul da Polônia tornou-se um Sonderkommando, nome dado aos prisioneiros que eram forçados pelos nazistas a executar uma série de tarefas terríveis dentro dos campos, como limpar as câmaras de gás, retirar os cabelos e os dentes de ouro dos mortos e transportar os corpos para os fornos crematórios.
Marcel Nadjari seria mais um dos prisioneiros judeus obrigados a participar da Solução Final, perdido no meio de milhões de pessoas sujeitas aos crimes de guerra nazistas, se não tivesse sido o autor de um impressionante testemunho, escrito sob a forma de uma longa carta dirigida a familiares e amigos, que enterrou em Auschwitz.
Essa carta escrita em grego foi descoberta por um estudante nos anos 1980, mas o seu conteúdo estava inacessível. Começou a ser divulgado em outubro e só nos últimos dias ficou integralmente disponível em inglês, levando a imprensa alemã e belga a regressar, em detalhes, à história deste inestimável documento.
O fato de ter estado debaixo de terra durante quase 40 anos, sujeita à ação da umidade embora fechada numa garrafa térmica guardada dentro de uma bolsa de couro, como afirma o jornal belga Le Vif, tornou a carta ilegível (só algumas palavras eram perceptíveis). Agora, e graças à colaboração entre um especialista em informática, Aleksandr Nikitiaev, e um historiador, Pavel Polian, foi possível ter acesso a cerca de 90% do testemunho do homem que tantos cadáveres transportou para os crematórios.
Recorrendo a uma técnica que lhe permitiu, a partir de imagens digitais da carta, salientar os trechos que eram invisíveis a olho nu, Nikitiaev ajudou a “redescobrir” o documento que Polian decifrou.
“Não tenho medo de morrer”, escreve o soldado grego, “afinal, como posso eu ter medo depois de tudo o que os meus olhos viram?”.
A carta, com 13 páginas manuscritas, é dirigida a três pessoas, entre elas ao amigo Dimitris, a quem chama Misko, e foi escrita entre meados de outubro e final de novembro de 1944, aparentemente na esperança de que viesse a ser encontrada e pudesse servir de testemunho. Nadjari acreditava que os nazistas chegariam a exterminar todos os judeus e receava que os crimes do III Reich ficassem encobertos.
Com uma certa ironia
No documento que enterrou numa floresta perto do crematório n.º 3 de Auschwitz, Marcel Nadjari faz uma descrição minuciada de todos os horrores a que assistiu diariamente e diz que quer ver os crimes nazistas expostos: “Este é o meu último desejo. Condenado à morte pelos alemães porque sou judeu.”
A sua carta, que é também um testamento, faz parte de uma série de nove documentos conhecida como os Pergaminhos de Auschwitz, todos escritos – e escondidos – por homens do Sonderkommando. Pavel Polian estuda os documentos há dez anos, segundo o site da Smithsonian, instituição norte-americana dedicada à cultura e ao conhecimento.
Esses nove relatos têm cinco autores e estão na sua maioria redigidos em iídiche (o de Nadjari é o único em grego). “São os documentos mais centrais do Holocausto”, disse o historiador russo à empresa de radiodifusão alemã Deutsche Welle, defendendo, tal como outros colegas, que haverá ainda outros relatos semelhantes à espera de serem descobertos.
Na carta de 13 páginas, e apesar do contexto terrível em que vive, Nadjari não abdica, em alguns trechos, de um certo tom irônico, sarcástico até: “[…] Ficamos aproximadamente um mês em quarentena e depois nos deslocaram, tanto os saudáveis como os doentes. Para onde? Para onde, querido Misko? Para um crematório. Vou ter explicar abaixo o trabalho adorável que o Todo-poderoso quis que fizéssemos.”
Em seguida, o soldado transformado em Sonderkommando fala de um grande edifício com uma chaminé larga e 15 fornos. Por baixo do jardim, diz, há dois grandes porões – um serve para os prisioneiros se despirem, o outro é uma câmara de execução. Nessa última as pessoas entram nuas e, quando já estão lá, “aproximadamente três mil”, a porta é selada e todas são expostas ao gás. “Respiram pela última vez depois de seis ou sete minutos de martírio”, escreve, a maioria sem sequer ter chegado a suspeitar do que estava prestes a acontecer, acreditando apenas que iam tomar um ducha.
“Passada meia hora abrimos as portas e o nosso trabalho começa”, continua Nadjari, presumindo que a sua própria morte não demoraria. “Carregamos os corpos destas mulheres e crianças inocentes para o elevador que as transporta para a sala com os fornos, e é aí que as põem nos fornos, onde ardem sem qualquer combustível por causa de toda a gordura que tinham.”
Garante o soldado que um corpo produz cerca de 640 gramas de cinzas e de pequenos ossos, fragmentos que os militares alemães presentes obrigam os Sonderkommando a esmagar para que todos os vestígios dos prisioneiros queimados possam depois ser lançados ao Rio Vístula, nas imediações, procurando esconder os rastros de tais atrocidades. “Os dramas que os meus olhos viram são indescritíveis.”
Viver para vingar os pais e a irmã
Marcel Nadjari conta ainda aos três destinatários da carta – o amigo Dimitris (Misko) Stefanidis; Ilias Koen, seu primo e membro da resistência executado em 1944; e Georgios Gounaris, uma mulher grega cuja fotografia levou para Auschwitz – que fazia parte de um grupo de cerca de 1000 prisioneiros a que os nazistas chamavam “unidades especiais” (os Sonderkommando) e que esperava ser eliminado como as milhares de pessoas – judeus húngaros, polacos, gregos, franceses – que tinha já transportado para os fornos.
Consciente de que, caso chegasse às mãos dos destinatários, o seu testemunho levaria a muitas perguntas sobre a sua própria conduta, Nadjari se antecipa: “Meus queridos, quando lerem sobre o trabalho que fiz, dirão – Como fui capaz: eu, Manolis [apelido dado a si mesmo], ou qualquer outra pessoa, de fazer este trabalho e de queimar [outros] companheiros crentes. No começo disse a mim mesmo a mesma coisa, [e] muitas vezes, pensei em me juntar a eles para acabar com tudo. O que me impediu de fazer isso foi a vingança. Eu queria e quero viver para vingar as mortes do [meu] Pai e da [minha] Mãe, e a da minha adorada irmãzinha Nelli.”
Ao contrário do que previra, o grego Marcel Nadjari sobreviveu a Auschwitz, acabando por morrer em 1971, aos 54 anos, nos Estados Unidos, para onde emigrara com a mulher, trabalhando como alfaiate. Chegou mesmo a escrever as suas memórias de guerra, em 1947, quando estava ainda em Tessalônica, a cidade em que nasceu, mas aparentemente nunca falou da longa carta que tinha enterrado na Polônia.
“Lembre-se de mim de vez em quando, assim como eu me lembro de você”, diz a Misko, o amigo a quem deixa as propriedades da família, contanto que ele acolha o seu primo, Ilias. “Sempre que alguém perguntar por mim, diga simplesmente que eu já não existo e que parti como um verdadeiro grego.”
Quando a carta está perto do fim, é na irmã que o soldado volta a pensar: “Por favor, Misko, vai buscar o piano da minha Nelli com a família Sionidou e o dê a Ilias para que o tenha sempre consigo […], ele a amava tanto e ela oamava também.”
Segundo o diário irlandês Irish Times e o semanário belga Le Vif, Pavel Polian, o historiador russo encarregado de decifrar o texto que as modernas técnicas informáticas recuperaram, conseguiu encontrar a filha de Marcel Nadjari para lhe entregar a carta do pai, que, 70 anos depois de ter sido escrita, foi lida em voz alta numa sinagoga de Tessalônica. Ela chama-se Nelli.