Joe, para quem não conhece, é um filme de 2013, baseado no romance homônimo de Larry Brown. A película conta a história de Joe (Nicolas Cage, em um dos seus melhores papéis, aliás), um lenhador, ex presidiário, alcoólatra que vive regado em excessos: da bebida para a violência, da violência para o sexo, do sexo para a bebida; e que conhece um garoto chamado Gary (Tye Sheridan) de quinze anos que vive uma vida de nômade com a família e um pai abusivo.
A primeira cena do longa já explicita a relação familiar entre Gary e seu pai Wade (Gary Poutler): o garoto anuncia os defeitos do seu pai: onde ele vai, carrega problemas, e afunda, mais e mais a sua família consigo. Wade, ou G-Daawg (para quem é seu amigo) nos é trazido como um personagem de puro instinto: quase como um Super-Homem de Nietzsche, Wade busca saciar apenas sua vontade e não se importa de pegar alimentos no lixão; se recusa a receber ordens no trabalho, por mais que precise do dinheiro para sustentar a sua família – e mesmo que isso vá custar o seu emprego e o do filho. A única diferença, é que, ao invés de se responsabilizar pelos seus atos, Wade não se culpa, afinal, como um animal que só vive por puro instinto, não pode ser responsabilizado por uma boa ou má ação.
Joe, em paralelo a G-Daawg, não se difere muito em um primeiro momento: provavelmente, se continuasse no caminho em que se encontrava, iria para o mesmo lado. Digo: a grande diferença do primeiro para o segundo é o fato de o personagem principal não ter esposa e filhos e perceber a importância do seu autocontrole. Inclusive, em uma das cenas mais marcantes do filme vemos sua narração sobre como ele se percebe tendo uma visão distorcida do mundo, da fé e da razão, esperando que consniga encontrar um sentido nisso tudo além de fazer o que gostaria de fazer e ser preso por isso – tudo isso enquanto vemos Wade fuçando no lixo como um cão para conseguir comida para si.
Mas agora vamos para alguns símbolos e metáforas que podemos perceber no filme e que reforçam a ideia de semelhança do protagonista com o pai de Gary. O personagem de Cage tem uma cadela violenta que fica o tempo todo presa em casa, cuidando da sua casa. Sempre que algúem quer ou precisa entrar lá, ele precisa sair e “guardar” sua cadela. O animal é um símbolo para seu comportamento violento, animalesco – apesar de domesticado. Além disso, é curioso notar que em uma das cenas mais memoráveis, quando Joe acaba de sair de um momento que precisa travar sua violência, se dirige tão logo para o bordel e, ficando irritado com o cachorro que cuida do lugar, leva sua cadela e a solta enquanto tem uma relação sexual com uma prostituta – coisa que não havia acontecido da primeira vez que fora lá, apenas para conversar com a dona.
Nesse momento a cena é uma clara metáfora da liberação dessa energia animalesca contida nos homens que, no fim, leva à morte da outra cadela e a um momento de perseguição policial. A polícia, no caso do filme, também pode ser vista como um símbolo: o da consciência, da razão, que busca podar os seus limites e, mais, essa ideia fica explícita nos diálogos em que Joe tem com o Xerife da cidade, mostrando que a consciência – ou a lei – não está lá para machucá-lo ou tratá-lo mal, mas para ajudá-lo também a não ser “preso”.
São símbolos bem claros e que, por estarem também muito bem articulados à trama, servem de muito agrado ao espectador, que recebe a história e consegue acessá-la a camadas mais profundas e compreender melhor os personagens, suas motivações e o enredo. Joe é um protagonista em desespero: na casa dos cinquenta não encontra sentido na sua vida nem na dos homens que trabalham para si. Os seus excessos e a ausência de uma pedra como porto seguro o empurram nessa espiral de decadência. Uma cena que me comprovou isso foi quando sua companheira de cama por uns tempos afirma a ele que ele finge estar dormindo para não ouvi-la mas sabe que, se dissesse a coisa errada – ou a certa – ele choraria na mesma hora. Joe anseia por um sentido na vida, anseia por redenção de todos os seus vícios, apesar da sua ruína constante.
E isso só passa a ser possível na vida do personagem de Cage pelo seu encontro com Gary. O menino de quinze anos tem de se virar para sustentar a família enquanto seu pai apenas gasta dinheiro com bebedeiras e bate no filho. E é dando a chance de um emprego para o garoto, que ele começa a assumir o papel de pai. O garoto tem reta decisão: ele atura a violência do pai consigo, sempre dá a outra face – a menos que tenha de proteger a sua irmã mais nova, Dorothy, ou sua mãe. Ao ver que um garoto que tem todos os motivos para ser como o pai e não o é, Joe cria uma espécie de apego ao menino pelas suas virtudes e bondade e decide protegê-lo a qualquer custo e, tendo em vista a situação do rapaz, assume a posição de paternidade do menino.
Um dos momentos mais icônicos e simbólicos no desenvolver dos personagens como pai e filho é a passagem da caminhonete. Além do simbolismo conhecido, o carro não é dado de início, mas é permitido ao garoto dirigi-lo por uns instantes, mostrando que ele não só estava sendo um guia para esse novo caminho que Joe deseja seguir, como também sendo um momento de independência do garoto. Desse modo, o menino começa a não só se afastar dos abusos do pai e se fortalecer contra ele como também, pela demonstração de paternidade do protagonista, começa a trilhar o seu próprio caminho no mundo.
O crescimento do personagem principal como pai também se reflete no seu como pessoa, alcançando certo sentido em sua vida, principalmente pelo seu instinto protetor e conseguindo conciliar o que sua consciência e o seu lado animal mais desejavam: no início do filme, o menino não cruza a ponte para pedir carona para Russel, um dos homens que entrou na espiral de violência de Joe. Já no final, temos novamente a ponte, que funciona como símbolo de travessia, da própria vida em si, na qual tanto Joe como o Gary chegam a atravessar e é lá que vemos de fato a mudança do protagonista.
O personagem de Cage poderia ter resolvido a situação na mesma hora, uma vez que já compreendia o que fariam os homens que “compraram” a Dorothy do pai por sessenta dólares. Poderia ceder ao seu instinto mais violento e à sua necessidade, no entanto, ele acaba por liberar um dos homens por não conhecê-lo, em um ato de possível piedade e reconhecimento da possibilidade de ser um homem melhor. Ao mesmo tempo, ao resgatar a menina, pede imediatamente que Gary vá para a cidade com ela e chame a polícia, de forma a trazer tudo que acontece ali aos olhos da lei, da razão.
Joe é um dos melhores filmes que vi sobre os vícios do homem e da recuperação às virtudes que a paternidade pode dar, sem, no entanto, fazer-nos esquecer de como os vícios podem destruir o homem e, inclusive, as próprias famílias. No entanto, também é válido ressaltar e recordar que, no filme, somos lembrados que por pior que sejam os pais, não é possível dissociá-los das vidas de seus filhos, uma vez que também são responsáveis pelo nascimento da criança: inclusive, o protagonista não consegue matar Wade no final, mas o próprio se leva à perdição, se jogando no meio da ponte, o que reforça essa ideia de que não é possível um substituir por completo o outro, por melhor ou pior que seja.
Joe é um filme que pode ser visto e revisto e, com certeza, sei que tantos outros encontrarão mais camadas bem mais profundas que esse breve relato foi capaz de vos trazer, seja por jogos de câmera, como por escolha de iluminação (por exemplo na cozinha do bordel), seja pela edição de som que deixa tudo com um som “surdo” quando o protagonista é perseguido pelos policiais em quase todas as vezes, seja pela discussão acerca da tradição (a relação entre o passado de Joe e do futuro de Gary) e da criação de filhos, ou até pela escolha da profissão, a de envenenar árvores para que possam assim serem legalmente derrubadas, e, isso tudo, sem contar que muita gente terá a oportunidade de ver Nicolas Cage fora dos memes e em uma ótima atuação.