Editora: Biblioteca Azul
Ano: 2015
Tradução: Maurício Santana Dias
336 páginas
Elena Ferrante é um segredo. Desde que publicou seu primeiro livro, na década de 90, mantém sua identidade escondida do mundo. Ao ler A Amiga Genial, primeiro volume da série Napolitana, ficamos surpresos com o fato de que não conhecemos quem é a autora: primeiro, porque uma parte de você se vê obrigada a pensar algo como “mas como pode alguém não querer ser publicamente reconhecido por uma obra tão fabulosa?”; segundo porque, tão rápido surge este pensamento, a mente é atropelada por outro, contrário mas, ao mesmo tempo, complementar: “Elena Ferrante não precisa fazer-se ver; ela se faz ver em cada página, cada linha, cada palavra desta obra. Ela pode ser qualquer um, qualquer uma, porque o que importa, no fim, é que ela narra vidas humanas tão verdadeiras e palpáveis que quase que existem por si mesmas”.
Este é o clima da leitura deste livro: uma sobreposição de sentimentos, emoções, expectativas que se juntam, se frustram, se atravessam. Algo bem parecido com o turbilhão de experiências que é viver – mais ainda quando se vive numa Nápoles que ainda sente cotidianamente os efeitos da guerra e da pobreza. A história é narrada por Elena Greco (que, certamente, faz as cabecinhas curiosas se perguntarem se tem relação com a Elena que a escreve), que conta a infância e a adolescência vivida ao lado da amiga Lila Cerullo. Não é à toa que esta mistura de emoções chegue à superfície quando se lê o livro, uma vez que a própria história destas duas amigas é uma história de afetos e desafetos, de amores e ódios, de companheirismos e disputas, de união e de separação.
A Amiga Genial consegue unir, em suas páginas, as singelas narrativas do processo de construção de uma amizade entre duas meninas à densa névoa de violência e pauperização que assolam o bairro onde moram. Num mundo em que a violência é a linguagem com que se comunica com os outros, consigo e com o próprio mundo, as pequenas ternuras e os pequenos afetos que se fazem ver nas rachaduras desta violência parecem tomar proporções gigantescas e, quase como crianças, em vários momentos nos sentimos capazes de acreditar genuinamente que estes pequenos gestos são capazes de salvar o mundo.
Talvez seja exatamente aí que resida a beleza e a riqueza deste livro. Elena Ferrante consegue fazer coexistir coisas tão aparentemente excludentes que é capaz de fazer seus leitores continuarem respirando neste mundo de aspereza que rechaça tudo aquilo que não cabe perfeitamente na caixinha do Bom, do Ruim, do Bem, do Mal. Ou seja, Elena Ferrante mostra, em A Amiga Genial, o que há de mais humano em nós. Através das duas amigas e de todas e todos que atravessam seu caminho, vemos um pouco de nós mesmos, do medo e da alegria de viver e estar com os outros. Abrindo espaço para a coexistência da diferença em seu sentido mais potente, o livro reafirma a importância de não abolir aquilo que, num primeiro olhar, parece “ruim.” Como disse Clarice Lispector, “até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”
A Amiga Genial conta uma história para lembrar, mas também a conta para esquecer. Apagar e reacender a vida que se foi, dura, crua, mas que, como toda vida, se mantém, ainda, em algum cantinho apertado de nós mesmos. E, neste processo, nos convoca a pensar sobre nossos próprios apagamentos e reacedimentos.