“Praticamente inofensiva”. É assim que o Guia do Mochileiro das Galáxias define a Terra. E só. Em sua realidade distorcida nas palavras, Douglas Adams, autor deste livro que inicia a sua famosa trilogia de cinco, nos faz sentir na nossa pele – e no ar expelido pelas risadas – a sátira rasgante em relação a tudo aquilo que é humano e a desvalorização daquilo que nos é caro. Mas, como nos apontava Aristóteles, a comédia nos mostra exatamente o “homem inferior”, e, querido leitor, é exatamente nesse voo – quase – non-sense que Adams nos leva que conseguimos perceber grandes defeitos da humanidade – principalmente nesse período moderno – e reconhecer, por meio das nossas falhas, também, a grandiosidade humana.
“Os homens sempre se consideraram mais inteligentes que os golfinhos, porque haviam criado tanta coisa – a roda, NY, as guerras, etc – enquanto os golfinhos só sabiam nadar e se divertir. Porém, os golfinhos, por sua vez, sempre se acharam muito mais inteligentes que os homens exatamente pelos mesmos motivos.”
O primeiro livro, que logo em seu início vem com a notícia de que Arthur perderá a própria casa para a construção de uma via, traz já a tona essa valorização e sensação de pertencimento que é própria ao homem. Ele não quer perder a própria casa, no entanto, Adams amplifica a sensação ao colocar toda a Terra em perigo, e aí, mostrar que há muito mais de “lar” nesse nosso querido planeta Terra do que imaginamos.
Ademais, seguindo o desenrolar da trama, percebemos novas raças alienígenas que são muito mais importantes e se consideram infinitamente superiores a nós, humanos, e disso suspeito que a maioria de vocês já sabem. Entretanto, a história não é sobre alienígenas, não é sobre a destruição do planeta, viagens espaciais e peixes dourados que possibilitam a tradução simultânea – inclusive, baita referência bíblica o Peixe Babel – que hoje já está se alcançando ou se buscando, mas sobre nós e a nossa condição.
Há um dos trechos que encontrei anotado que alarma para o fato de homens que preferem agitar pedaços de papel colorido inanimados ao invés de se movimentarem a si mesmos atrás dessa animação. E a crítica do autor, aí, não se reduz apenas ao famoso: “faça o que te faz feliz”, ou então ao consumismo e ao confuso fluxo da modernidade. Ele prossegue e, pelos Vogons, aponta nossa inércia em relação a todo o sistema burocrático que nos é “dado” pelo estado, a nossa preocupação em criar e cuidar de coisas supérfluas ante ao que nos é caro e necessário.
“Não chegam a ser malévolos, mas são mal-humorados, burocráticos, intrometidos e insensíveis. Seriam incapazes de levantar um dedo para salvarem suas próprias avós da Terrível Besta Voraz de Traal sem antes receberem ordens expressas através de um formulário em três vias, enviá-lo, devolvê-lo, pedi-lo de volta, perdê-lo, encontrá-lo de novo, abrir um inquérito a respeito, perdê-lo de novo e finalmente deixá-lo três meses sob um monte de turfa, para depois reciclá-lo como papel para acender fogo.”
E da obra literária do autor da trilogia de cinco, se percebe também uma crítica muito além ao nosso materialismo. É percebido que ele trata a poesia da Terra como a número um dentre as piores do universo. No entanto,essa crítica está explicitamente direcionada a um tipo específico de poesia – inclusive, Adams chega a citar um autor em específico, um conhecido, quando o Guia era um programa de rádio. Digo isso pois desde Aristóteles a Barthes percebemos essa questão do universal do homem no que tange à literatura, e que a obra de arte em si é capaz de proporcionar mudanças e uma elevação do homem – muito por conta de sua função pedagógica e religadora. No entanto, ao lermos o título de um dos poemas do povo que a segunda posição no rank de piores do universo, já conseguimos perceber como e para que grupo em específico se conduz a crítica: “Ode ao pedacinho de massa de vidraceiro verde que eu encontrei no meu sovaco numa manhã de verão”.
Bem, lá, “quatro pessoas na plateia morreram de hemorragia interna, e o presidente do Conselho Centro-Galáctico de Marmelada Artística só conseguiu sobreviver roendo uma de suas próprias pernas completamente”. Imagine aqui.
E da poesia, podemos seguir para questões mais profundas, trazidas por Adams: a questão referente a vida, o universo e tudo mais. Aí, o autor provoca-nos o riso por conta do absurdo da resposta dada pelo computador. Mas o que nos importa também é analisar e perceber como durante todo o livro, Douglas Adams ironiza e satiriza as pessoas e suas ações, a política, a burocracia, e que, de certa forma, há uma simplicidade que solucionaria essas “implicâncias” do autor. A resposta está presente muitas vezes na simplicidade. É o que permite, por exemplo, que homens do campo vivam vidas muito mais plenas que alguém inserido e imerso no caos da cidade. Ou que pessoas consigam encontrar paz à noite após trabalhar horas e horas para sustentar a família.
E é aí que a satirização do homem e todo esse tratamento de nós mesmos como inferiores pelos mais diversos seres do universo começa a servir para dar sentido e ao mesmo tempo, permitem que a nossa importância escape em meio à ridicularização. Slartibartfast, o engenheiro planetário, mostra a Arthur que ganhou um prêmio ao fazer as praias da Noruega. No entanto, se a Terra fosse tão desprezível assim, como a narrativa nos mostra, seria realmente possível que se fosse dado um prêmio por alguma característica sua, quaisquer que fosse – além da pior poesia do universo?
Além disso, é descoberto que a Terra fora projetada como computador para descobrir a pergunta que dá resposta a questão relativa da vida o universo e tudo mais. Ou seja, mesmo sendo apenas um computador, o nosso “pálido ponto azul” teria uma imensa importância no que se diz quanto o sentido e significado da existência – o que começa a por em cheque toda a satirização e o argumento de tamanho referente à insignificância do homem perante o universo – também já refutado por C. S. Lewis e Chesterton.
Dessa forma, percebe-se que Douglas Adams não somente consegue criar situações engraçadas ou inesperadas e que chegam a beirar o non-sense, mas traz em sua obra toda uma carga de significado acerca do que é caro – e desprezado – pelo homem embasados em uma crítica voraz que aponta as nossa falhas, manias, a nossa política, a nossa burocracia, a nossa forma de agir frente ao mundo. Porém, toda essa crítica carrega em si a importância do homem para com o planeta, o universo e consigo mesmo, afinal, se não há importância, por que se valeria a pena criticar?
Até mais e obri… não entre em pânico.