Se você assistiu Animais Noturnos, provavelmente também achou que estava no filme errado nos primeiros segundos de vídeo da película. O espanto incial, leitor, ouso dizer, é geral, mas, diferentemente da arte de Susan – a autora das próprias obras, das mulheres nuas, diga-se de passagem –, a abertura tem uma função e significado para o filme. Não que a exposição/expressão artística dela seja inútil, claro, não digo isso, e o próprio diretor afirma que se apaixonou por essas mulheres mas, se você se atentou bem ao filme percebeu que a artista bem-sucedida considerava a própria vida e a própria arte vazias.
A cena que inicia o filme, além de nos colocar como espectadores da exposição de Susan, teve também, tal como afirmou Tom Ford, o diretor, a intenção de chocar o espectador, para prendê-lo no assento e nos fazer imergir no filme do início até o final. Também ele afirmou que havia um significado inicial, como forma de caricaturar o que a América é: glutona, envelhecida, cansada, e, muitas vezes sempre sorrindo como se estivesse maravilhosa, mas que se arrependeu e que, ao ver a gravação da cena, se apaixonou pelas moças e que, a cena traria o significado para Susan de que aquelas mulheres, que são totalmente o oposto do ideal de beleza, conseguem ser felizes e vibrantes e ela, que se adapta a toda a sociedade não consegue.
O fato é que a abertura do filme tem uma função de gatilho na personagem de Amy Adams, que começa a perceber o quão vazia é sua vida apesar de bem-sucedida: ela tem uma boa casa, um bom trabalho, ela cursou ótimas faculdades de artes e mesmo assim não consegue tocar a própria vida ou criar algo com que sinta e perceba uma ligação maior, uma força que a mova: ela mesma afirma que aquilo que faz é “lixo”. O filme todo é recheado de simbolismos, o que podem ser abordados outra hora, mas agora, faz-se reforçar que a própria produção artística de Susan se enquadra muito – ironicamente – com as exigências modernistas (ou pós-modernistas).
Ela deixa de ver a arte como fim em si mesma, ou com a função de tocar naquilo que é universal à nossa humanidade para focar no “como”, ou, tal como traz Ângelo Monteiro em seu livro “Arte ou Desastre”, os modernistas passaram o foco da produção artística do fármaco para a bula. Em um breve resumo, sabemos que os modernistas desejavam a desconstrução para a construção e, para tanto, acabaram por sobrepor a forma sobre o conteúdo e davam cada vez mais ao grotesco, e, de maneira totalmente extrema que acabava, por muitas vezes, tornar a arte como matéria totalmente instrumentalizada.
E o que faz da arte, arte? Pensavam os modernistas. Da Literatura, são as letras, as palavras, não necessariamente se precisa de uma escrita organizada para fazer arte. Os vários manifestos vanguardistas defendiam, até certas vezes, destruição da sintaxe, do texto padronizado e sequencial. Dos quadros, as cores os compõem, ou seja, não importa o que vai ser retratado e a habilidade em criar algo com uma ligação a algo superior, ou retratar uma imagem, mas apenas como aquilo será passado e como se produzirá o impacto desejado.
E, apesar de tanto fazerem barulho para quebrarem o padrão – vide o estardalhaço forçoso que foi a semana de 22 – esses mesmos “desconstrutores” acabaram, por hoje, virar o padrão. Um padrão quase que, ironicamente, niilista, mas ainda assim um padrão. Duchamp, por exemplo, dizia que fez o que fez por odiar a arte, e hoje, sua famosa obra “Fonte” – composta por um urinol – é considerada uma peça de arte e já tendo sido estimada em 3 milhões de euros. A anti-arte como padrão artístico.
Há a necessidade de que eu faça uma nota aqui, pois tenho de concordar com os benefícios do modernismo em relação às várias técnicas de construção artística ou sobre como a forma de se produzir um efeito chocante e prender o leitor/espectador de maneiras mais “fortes e viscerais”, além da possibilidade de novos temas trazidos para esse campo, mas há de se notar também que não cometo erros ou incoerências em apontar tais contradições, principalmente quando os valores modernos são levados a extremos a ponto de esvaziar e tornar a arte um mero instrumento – mais culpa do artista que do movimento, em si – tal como acontece com Susan, no filme, que tem sua arte esvaziada de significado para si mesma, pasme, a própria criadora.
Apesar disso, percebe-se que há certa diferença de tratamento em relação à produção artística quando Susan recebe o manuscrito do seu ex-marido, dedicado a ela. A arte que Susan cria não produz mais impacto algum em sua vida, não a motiva, e, novamente, como ela fala: é um monte de lixo. A sobreposição da forma, do foco no impacto, em detrimento do conteúdo gerou um esvaziamento de sentido não só na sua criação como na sua própria vida e, ao entrar em contato com Animais Noturnos, ela não só passa a ter um contato com outro tipo de arte como também a reconhecer a sua vida na obra.
A obra de Edward, que foi rejeitado pela mesma Susan por ele ser um fracassado na vida, produz não só o efeito de vingança desejado por ele, mas provoca reconhecimento constante e direto com a vida da própria leitora. O incômodo chega a transpassar à tela. A obra é tão visceral e cruel que a artista passa noites sem dormir e causa tanto impacto que começa a produzir uma mudança de comportamento na mesma – que já vinha tendo mais e mais terremotos na sua vida pessoal; evitarei dar spoilers.
Leitor, agora, você pode se perguntar: mas Ford, o diretor, falou que as mulheres do início são exatamente para simbolizar a quebra de padrão da sociedade, quebrar o padrão de beleza e expressar a liberdade na qual elas viviam! Como então, você impõe juízo de valor em uma obra de arte? Bem, como afirmado acima, afirmo que o padrão desconstruído modernista, se tornou padrão atualmente e, veja bem, tal como o urinol de Duchamp, que a princípio surgiu para ser vaiado, faz sucesso; ela é bem vista pelo meio social e artístico: que mulher dentro dos padrões atuais, não quer ser bem sucedida como Susan? Claro que há suas exceções, mas o padrão, hoje, é outro.
Todorov já nos disse que a literatura (e aqui sinto-me à vontade, leitor, para incluir todo o campo artístico) nos provoca um processo de humanização e auxilia na criação de identidade, seja pelas histórias de amor, de felicidade, de tristeza e, quiçá, violência. O que esperar então de um mundo (ou de uma arte) padronizada num extremo de ausência? Onde apenas o que importa é a sequenciação ou a disposição dos elementos para causar impacto e nada mais?
Susan, ao entrar então em contato com uma obra de arte genuína – relembrem-me da citação de Edward na dedicatória do livro, quando diz que essa é a obra mais sincera que ele já fez na vida, ou então quando eles discutem sobre arte no apartamento e ela não gosta dos escritos dele, e comparem com o meio e toda a produção artística da protagonista, e até a vida da artista em relação à arte, esta que acaba se tornando puramente comercial –, sofre com todo esse preenchimento de significado e sentido na sua vida. A vingança de Edward não só a faz carregar esse sofrimento e – spoiler – voltar a gostar dele, mas faz com que ela veja sentido na vida novamente. O próprio Ford diz que o final em aberto indica que esse capítulo anterior da vida de Susan acabou, mas que o que virá não podemos saber.
Edward nos diz que a via como um Animal Noturno – nome que inspira a seu romance -, e isso pode ser visto tanto como a vingança, quanto um aviso para nós, espectadores, para que não nos tornemos animais noturnos, seres que ficam “à noite acordados com o olhar carregado em tristeza”. A sinceridade dele transposta à obra não só produz arte legítima e autêntica no caso, mas reforça que o puro tecnicismo é incapaz de produzir algo de um todo valoroso – um excesso de modernismo mal interpretado que leva ao esvaziamento e destruição de todo meio artístico e é tido como padrão de arte, talvez. Vale-se ressaltar, no entanto, que não basta apenas sinceridade para a criação ou o surgimento de uma obra de arte; Edward passou uma vida – pelo que se pode deduzir – trabalhando em cima da sua produção artística, ignorando seus fracassos e se aprimorando mais e mais.
Já nos disse Aristóteles que a arte tem por função vencer a natureza, pois ela não se importa conosco, de forma que se reproduza a segurança dos seus processos que são úteis e bons para nós; também é ele que defende que a arte há de trazer o que há de mais valoroso nos homens. Edward consegue por meio desse romance visceral nos fazer ver – e Susan também – não só o pior do homem, ou a violência de um amor, mas, por meio disso, provocar uma reflexão acerca de todo esse peso que carregamos e, assim, auxiliar nesse processo de humanização explícito por Todorov e produzir bons valores, tal como defendido acima. A prova viva desse impacto artístico não é só o sucesso de seu romance, e na nossa catarse ao acabar o filme, mas também o fato de que Susan, já nas cenas finais, retira o batom e a aliança do seu relacionamento já corroído – fundado apenas em formas e quase nenhum conteúdo –, deixando para trás toda essa maquiagem e superficialidade e, baseada nessa reflexão, muda seu comportamento para melhor.
Animais Noturnos é um filme que aborda uma história de vingança, um pouco de terror psicológico e traz reflexões acerca da violência e como muitas vezes os nossos próprios sentimentos podem ser violentos. Porém, para além disso, também traz à tona diversas questões artísticas – desde a estética usada pelo próprio diretor, como também a estética apresentada pelo enredo, pela história –, além dos vários simbolismos e personagens que tem funções de brincar com a mente dos personagens e com a nossa, meros espectadores, de forma que, no geral, a experiência final é tão grandiosa que faz muitas vezes com que o fôlego escape e surja a ânsia de querer assistir o filme mais e mais vezes para desvendar todas as camadas de conteúdo que ele apresenta.