Clarice Lispector é uma das mais influentes escritoras brasileiras. Sua incrível capacidade de dizer sobre o indizível e explorar a condição humana como uma ferida aberta é o que faz dela uma escritora incomparável. Muitos de seus romances contam histórias de mulheres que, de alguma maneira, se deparam com a vida e precisam encará-la. Macabéa, Joana, Lóri, G. H…. cada uma à sua maneira vive com intensidade os acontecimentos da vida.
Neste segundo Diálogos, conversamos a respeito da força destas personagens, da suposta “introspecção” de Clarice e de como a vida se desvela em suas obras. Confira:
LUISA – Dentre as muitas coisas que me chamam a atenção na obra da Clarice, uma das mais incríveis pra mim é a força das personagens dos seus livros. Quando digo “força”, quero dizer algo mais do que “grandes personagens”, mas algo como uma capacidade de criar o mundo e de viver nesse mundo que exige uma disponibilidade para consigo mesmo e com o outro e que tem uma forte relação com o que vivem por serem mulheres. Não acho que Clarice estava necessariamente preocupada em fazer “livros sobre mulheres fortes” ou que se detivesse em questões teórico-ideológicas sobre o feminino. Mas eu percebo que grande parte da potência destas personagens tem a ver com o fato de que, como mulheres, viveram coisas muito graves e intensas: Joana (Perto do Coração Selvagem) e seu passado com o pai e a tia, seu casamento e seu professor; G. H. (A Paixão Segundo G. H.) e sua barata; Lóri (Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres) e suas tentativas de saber-se por seus próprios olhos; Macabéa (A Hora da Estrela) e sua dura trajetória do nordeste para o Rio… parece que existe algo que liga estas mulheres, algo que tem a ver com estas vivências tão particulares do feminino na sociedade, como casamentos com desamores, a incredulidade dos outros perante suas capacidades, a difícil tarefa de se conhecer a partir de si e se afirmar enquanto sujeito, o duplo peso de ser pobre e ser mulher… você não acha?
LUIZ – Eu acho que toda a força das personagens femininas na Clarice tem a ver com aquela frase do Michel Melamed: “não confundir fragilidade com fraqueza: fragilidade é quão rápido se chega ao âmago, e não o quanto ele aguenta”. Neste sentido, as mulheres de Clarice, como os sertanejos de Euclides, são absolutamente fortes. Vejo que elas percebem que suas fraquezas são justamente as linhas limítrofes do que elas têm como maior possibilidade de vida – vida no sentido de Bataille, como desperdício de energia em direção à morte. Assim, para Macabéa a pobreza é um detalhe, assim como pra Lóri o sexo é um detalhe e para G.H. a barata é um detalhe porque a força está na dinâmica de que nada disso – pobreza, sexo, nojo – fazem parte da vida, são contingências de uma ordem social inescapável. Essas coisas fazem parte do “mundo da vida” e não da “vida no mundo”. A força delas, de todas elas, no caso, está em um caminho de aprendizagem. Mas o que você acha que ligaria elas?
LUISA – Isso, essa relação entre força e fragilidade em que uma coisa se transforma na outra (ou as duas coexistem) de uma maneira muito intensa. O que acho que liga elas é, como você disse, este caminho de aprendizagem mesmo. O modo como vão buscando aprender a ir em direção à vida, mesmo quando as contingências (“a pobreza, o sexo, o nojo”) insistem em se colocar como barreiras. A força, então, acho que reside no fato de que, como Clarice mesmo colocou em Uma Aprendizagem, elas vivem “apesar de”. E nesse movimento de viver apesar de vão se colocando no mundo. Acho errônea a interpretação de que as obras de Clarice são demasiadamente introspectivas – se o são na forma da escrita, não o são de maneira alguma quando percebemos que todo o trabalho introspectivo se volta para fora, para a vida. Sequer acredito que haja essa separação entre o dentro e o fora, que são mais como linhas dobráveis e maleáveis nas quais nós – e as personagens de Clarice – tentamos nos equilibrar.
LUIZ – Concordo! Quando as pessoas falam de “literatura introspectiva”, elas partem do princípio que existe uma literatura “extrovertida”, o que me parece estranho e absurdo. Talvez elas confundam a ideia de “fluxo de consciência” de Proust, Joyce ou Woolf com algo que seja um “movimento de dentro”. Na verdade, a literatura da Clarice é TODA baseada na matéria – é a materialidade da Clarice o mais importante! Por isso, uma barata, por isso Lori entra no mar: o mundo sempre pode revelar algo, mesmo que fugidio. Tanto é verdade que podemos falar em “força”. A memória não tem nenhuma importância em suas obras, mas sim uma latência de um hoje intensivo. O que acha?
LUISA – Sem dúvida, não se trata de memória. Clarice não quer contar estas histórias, no sentido de retomar um passado – nem mesmo em Perto do Coração Selvagem, com toda a infância de Joana sendo relatada; ela não quer fazer uma linha do tempo destas vidas. Talvez por isso alguns a rejeitem quando a leem: esperam linearidade, mas ela entrega um caótico atravessamento de acontecimentos. Pouco importa a memória. O que importa é de que maneira este vivido se manifesta, aqui e agora, e como ele é revivido por estas personagens – porque a memória é uma criação para atender à nossa necessidade de linearizar os acontecimentos. Nisso, acho, está a riqueza da obra de Clarice: negando o linear, o óbvio, o lugar-comum de que o passado influencia o presente, ela cria um espaço extremamente potente para que os acontecimentos se cruzem, para que os afetos se toquem. Por isso também podemos falar da força destas mulheres: se presas à narrativa da História, que não deixa espaços para a ambivalência, jamais poderiam ser fortes na fragilidade e frágeis nos momentos de força.
LUIZ – Depois de ler isso, fiquei pensando: que tal lermos a história das mulheres a partir de Clarice? Acho que cabem todas lá, não? Claro, é uma brincadeira, mas uma brincadeira possível. Temos que tirar um pouco do mofo da Clarice superexplorada pra achar essas outras Clarices. Sem dúvida vamos encontrar força e fragilidade: frágeis, quando fortes. Fortes,quando frágeis. Frágeis quando frágeis e fortes quando fortes. Tudo ao mesmo tempo.
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