Toda a nossa evolução pode ser vista a partir da necessidade humana de tecer fronteiras. Guerras, leis, governos, tradições, políticas, relações e quaisquer outros elementos sociais se aperfeiçoam para estabelecer a distinção entre aquilo que é e o que não pode ser.
Mas em “Borda”, o novo espetáculo da Cia Lia Rodrigues de Danças, em cartaz no Sesc Pinheiro, em São Paulo, a palavra em questão usa essas linhas históricas e contemporâneas para dar alguns nós. Logo na primeira cena, os bailarinos no palco se posicionam cobertos pelo figurino de plástico e retalho. Não se sabe ao certo o que é roupa e o que é pele, e a longa e bela introdução, com os artistas imóveis em cena, já serve como o primeiro nó.
Sim, porque nessa era digital em que o tempo e o espaço perdem limite, convergindo-se em algo instantâneo e quase sem importância, olhar para o silêncio se torna o grande desafio. “Quando algo vai acontecer?”, “quando eu posso reagir?”, são perguntas urgentes em qualquer situação, mas que a coreógrafa, juntamente com os demais artistas, implodem.

Aos poucos, os bailarinos se movem para desatar o segundo nó: não há música. A dança desprega-se de melodias, harmonias e sons porque os corpos dos artistas em cena são a expressão que basta. A música não existe para legendar o movimento, tampouco para protegê-lo; o gesto é a música, é o limite entre o lúdico e o nefasto, entre o eterno e o efêmero.
Parece estranho assistir a um espetáculo de dança em completo silêncio. Mas a primeira parte de “Borda” desfaz essa fronteira: quem determinou que a dança precisa ser cercada por música?
Dançado e criado em colaboração com Leonardo Nunes, Valentina Fittipaldi, Andrey da Silva, David Abreu, Raquel Alexandre, Daline Ribeiro, João Alveus, Cayo Almeida e Vitor de Abreu, “Borda” também ultrapassa o equador que há entre performance, dança e teatro, já que algumas dramaturgias composições da companhia, como “May B”, “Piracema”, “Encantado” e “Fúria, além de ecos da obra de Mário de Andrade, servem de território para os criadores. Pra mim, de algum modo, Samuel Beckett e suas imagens absurdas sobrevoam as referências do grupo, especialmente “Quad I+II” e até mesmo “Esperando Godot”.
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Com essa leitura em mente, dos figurinos aos objetos em cena, “Borda” traduz a desfaçatez da própria criação. Ao gesticular a agonia criativa, a companhia se libera da necessidade de fronteirizar a arte. Mas isso não quer dizer que o espetáculo seja fragmentado ou indecifrável. Longe disso, como destaca a professora Silvia Soter, “Borda” significa “imaginar, fantasiar. (…) a criação nos dá a possibilidade de ir além das fronteiras”.
Ainda na primeira parte, é lindíssimo o desenrolar de uma lona branca que os dançarinos fazem em cena. Ao usá-la como elemento principal, a sensação é de vermos uma maresia. O mar e sua imensidão misteriosa, cheia de profundidades desconhecidas, separa continentes, ilhas e foi a principal via de acesso dos exploradores. Daí, os movimentos de tomar a terra e depois regurgitá-la parecem incorporados pelos bailarinos, que a cada instante se tornam mais furiosos, ora como esses navegadores cruzando a tempestade, ora como criaturas desconhecidas ou ainda como a própria natureza.
A lona circula o palco inteiro, visualmente criando uma fronteira público e artistas, mas, ao mesmo tempo, propondo sua inversão.

No segundo ato, a trilha criada por Miguel Bevilacqua a partir de trechos das gravações feitas em 1938 pela Missão de Pesquisa Folclórica — projeto idealizado por Mário de Andrade —, estabelece o norte a ser seguido. A música é enérgica, repetitiva, guiando a dança para a catarse. São muitas as imagens poéticas que surgem desse momento e elas podem tanto confundir quanto liberar, abrir ou fechar, revelar ou mentir, não importa.
O jogo que está em cena é o próprio movimento daquilo que “não é, nem terá sido, que pode ser possível reunirmo-nos num outro nível de vínculo”, conforme a música de Caetano Veloso, já que na arte de Lia Rodrigues, a dança não é a borda, mas a vida que acontece para além dela.
Contínua mesmo quando imóvel, a dança é o próprio tempo.
FICHA TÉCNICA
Criação: Lia Rodrigues
Dançado e criado em colaboração com: Leonardo Nunes, Valentina Fittipaldi, Andrey da Silva, David Abreu, Raquel Alexandre, Daline Ribeiro, João Alves, Cayo Almeida, Vitor de Abreu
Assistente de criação: Amália Lima
Dramaturgia: Silvia Soter
Colaboração Artística e Imagens: Sammi Landweer
Design de iluminação: Nicolas Boudier
Assistentes de iluminação: Magali Foubert e Baptistine Méral
Trilha sonora: Miguel Bevilacqua (a partir de trechos da gravação feita em 1938 no norte do Brasil pela Missão de Pesquisa Folclórica idealizada pelo escritor e intelectual Mário de Andrade / Trecho da música “Amor Amor Amor”, de domínio público, que compõe o repertório do “Cavalo Marinho”, dança dramática brasileira, interpretada por Luiz Paixão.)
Mixagem e masterização: Ronaldo Gonçalves
Produção/difusão: Colette de Turville/ Assistente de produção: Astrid Toledo
Produção e difusão Brasil: Gabi Gonçalves/ Corpo Rastreado
Secretária/Administração: Gloria Laureano
Apoio logístico Centro de Artes da Maré: Sendy Silva
Professores: Amália Lima, Leonardo Nunes, Valentina Fittipaldi, Andrey Silva
Figurinos: Lia Rodrigues Companhia de Danças
Estagiária: Cecília Carvalhosa
Costureira: Antônia Jardilino De Paiva
Agradecimentos: Thérèse Barbanel, Corpo Rastreado, Inês Assumpção, Luiz Assumpção, Diana Nassif, equipe do Centro de Artes da Maré, Jacques Segueilla.
Dedicado a Max Nassif Earp
Produção: Lia Rodrigues Companhia de Danças
Coprodução : Kunstenfestivaldesarts – Bruxelles/ Maison de la danse/Pôle européen de création, en soutien à la Bienal de Lyon / Chaillot – Théâtre National de la Danse – Paris / Le CENTQUATRE – Paris/ Festival d’Automne à Paris / Wiener Festwochen – Wien / La Bâtie – Festival de Genève – Comédie de Genève / Romaeuropa-Rome/ PACT Zollverein – Essen/ One Dance Festival-Plovdiv /Theater Freiburg/ Muffatwerk- Münich / Passages Transfestival – Metz

