O espetáculo, criado e dirigido por Marcelo Varzea, mescla narrativas de autoficção em um jogo cênico dinâmico e musicado. Os atores compartilham relatos confessionais em minissolos de autoficção, revelando histórias marcadas em suas peles e existências num ato íntimo, olho no olho.
A dramaturgia de O que Meu Corpo Nú te Conta estrutura-se como um dispositivo cênico de extrema vulnerabilidade, onde o corpo não é apenas tema, mas o suporte e o medium primordial da narrativa. A opção pela autoficção em formato confessional, entregue em minissolos e num regime de olho no olho, transforma o palco em um espaço de intimidade ritualizada, onde as histórias pessoais — medos, desejos e traumas corporais — transcendem o particular para atingir uma dimensão coletiva e empática.
A nudez física, embora presente, é secundária perante a nudez emocional, que se torna a verdadeira força motriz da peça. A música e a dinâmica cênica, nesse contexto, não servem para ilustrar, mas para modular e tensionar esses relatos, criando uma grande metáfora sobre a exposição da essência íntima do ser. Assim, a dramaturgia opera uma dupla exposição: a do corpo-objecto que é narrado e a do corpo-veículo que narra, fundindo-os em uma experiência visceral para quem assiste.

O elenco de O que Meu Corpo Nú te Conta desempenha um papel fundamental, uma vez que a natureza autoficcional do espetáculo exige dos performers uma entrega que é simultaneamente técnica e visceral. A eficácia da narrativa confessional reside na capacidade dos atores de equilibrar a exposição íntima com a clareza técnica, um desafio que superam com maestria através de uma projeção vocal precisa — sussurrada o suficiente para criar uma atmosfera de cumplicidade, mas projetada com alcance para envolver todo o espaço cênico sem perder a nuance emocional.
Suas interpretações não são meramente eficientes; são transformadoras, pois canalizam histórias pessoais de medo, desejo e existência corporal com uma autenticidade que dissolve a quarta parede e convoca o público para dentro de um círculo íntimo de compartilhamento. Mais do que contar histórias, seus corpos tornam-se veículos de verdade crua, e é através de sua vulnerabilidade coreografada e da força de sua presença que a dramaturgia alcança seu impacto visceral e coletivo.
A parte técnica de O que Meu Corpo Nú te Conta opera com uma economia de meios que é absolutamente fundamental para a potência do espetáculo, atuando não como embelezamento, mas como extensão sensível da própria narrativa confessional. O desenho de luz de Vini Hideki, longe de ser uma simples iluminação de serviço, é um elemento dramático crucial: sua escolha por uma luz quente e precisa, que envolve os atores em um círculo de intimidade, ritualiza o espaço e intensifica a exposição vulnerável, transformando cada minissolo em um momento de revelação íntima e quase sagrada.
De forma análoga, a direção musical de Flávio Pacato exerce uma função de modulação emocional sutil e ponderada; as intervenções sonoras são escassas e precisas, surgindo não para ilustrar, mas para tensionar, pontuar e aprofundar os relatos, permitindo que a voz e a presença crua dos performers permaneçam no centro da experiência. Esta contenção técnica — onde luz e som atuam com extrema precisão e discrição — é o que garante que o foco permaneça na nudez emocional, criando uma estrutura invisível que sustenta, sem jamais usurpar, a violência poética e a verdade dos corpos em cena.

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A direção de Marcelo Varzea em O que Meu Corpo Nú te Conta revela-se notável por sua abordagem processual, corporal e relacional, na qual o diretor atua menos como um contador de histórias tradicional e mais como um arquiteto de vulnerabilidade, substituindo com maestria a estrutura dramática convencional por uma constelação de experiências vividas. Varzea orquestra um espaço seguro de exposição íntima, onde a autoficção dos atores pode florescer com autenticidade crua, guiando-os para além da atuação e em direção a um ato de compartilhamento ritualístico. Sua sensibilidade é evidente na maneira como equilibra os elementos cênicos para servir exclusivamente à potência das narrativas pessoais, sem jamais teatralizá-las ou explorá-las.
Em suma, O que Meu Corpo Nú te Conta consolida-se como uma obra de rara potência e integridade artística, na qual forma e conteúdo fundem-se em uma experiência estética e ética transformadora. Devemos reconhecer o espetáculo como um marco na cena contemporânea por sua corajosa desconstrução dos mecanismos teatrais convencionais, substituindo a ficção pela verdade crua e a empatia pela identificação fácil.
Sob a direção de Marcelo Varzea, cada elemento — da entrega visceral do elenco à economia poética da técnica — converge para criar um espaço ritualístico de vulnerabilidade compartilhada que não apenas questiona os limites da representação, mas ressignifica o próprio ato de narrar como um exercício de exposição e cura coletiva. Mais do que um espetáculo, é um acontecimento que persiste no espectador como uma lembrança corporal, comprovando que a maior revolução cênica possível reside na simples, e radical, exposição da verdade humana em sua forma mais pura e desarmada.
Ficha Técnica:
Criação, dramaturgia e direção: Marcelo Varzea
Atuação e textos: Coletivo Impermanente
Elenco: Agmar Beirigo, Ana Bahia, Angie Rodrigues, Alexandre Creão, Bruno Rods, Camila Castro, Dani D’eon, Daniel Tonsig, Eduardo Godoy, Ellen Regina, Flavio Pacato, Joelle Malta, Isaac Medeiros, Letícia Alves, Renan Rezende, Thiene Okumura, Veronica Nobili, Vini Hideki
Direção de movimento: Erica Rodrigues
Coordenação técnica e desenho de luz: Vini Hideki
Músicas originais: Flavio Pacato e Marcelo Varzea
Direção musical: Flavio Pacato
Assistência de direção: Bruno Rods e Talita Tilieri
Diretor residente: Bruno Rods
Consultoria teórica: Mariela Lamberti
Preparação corporal: Veronica Nobili
Preparação vocal: Lara Córdulla
Design gráfico: Bruno Rods
Fotos: Renato Domingos
Assessoria de imprensa: Katia Calsavara e Renan Rezende
Mídias sociais Coletivo Impermanente: Bruno Rods, Thiene Okumura, Ana Bahia
Produção executiva Coletivo Impermanente: Camila Castro
Assistente de produção Coletivo Impermanente: Letícia Alves
Produção Corpo Rastreado: Leo Devitto

