As tentativas infelizmente bem-sucedidas de apagar fontes históricas fazem com que, quarenta anos após o seu fim, ainda seja complicado mensurar os impactos da ditadura civil-militar que durou de 1964 a 1985. Por exemplo: qual o impacto da ditadura para os povos originários? Poucos fizeram esta pergunta, de difícil resposta. Podemos apelar para a metonímia: tomando a parte para representar o todo, entendemos mais a fundo nossa história. O caso em questão: o deslocamento forçado da população indígena.
No início do filme Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá temos uma câmera estática, para a qual Sueli Maxakali apresenta sua grande família, ou melhor, a parte da família que vive próxima. Ela não apresenta os familiares para nós, espectadores de um documentário, mas sim para seu pai, que mora longe. Sueli decide ir além na tentativa de reconectar-se com Seu Luiz: organiza uma caravana com seus irmãos para vê-lo.

Durante a ditadura, Luiz Kaiowá foi arrancado de sua aldeia no Mato Grosso do Sul e realocado, depois da passagem por várias cidades, na aldeia Maxakali perto de Teófilo Otoni, Minas Gerais. Anos depois, a Funai novamente o obrigou a se deslocar, voltando para sua terra, mas deixando filhos para trás, sem a possibilidade de reencontro por quarenta anos. Até que surgiu o cinema para fazer milagres e mostrar como foi gestado o reencontro. Há inclusive uma breve reconstituição da marcha de Luiz e seu irmão Zé Lino saindo da aldeia rumo à Brasília.
Percebemos no meio das conversas as palavras da língua portuguesa absorvidas pela língua indígena, como celular, quinta-feira, jornalista, controlar, conceitos de tempo (dias, anos) e alguns numerais. Mas você sabia que o inverso é verdadeiro – que muitas palavras da língua portuguesa têm origem indígena? Há palavras que nomeiam comidas (abacaxi, abacate), lugares (Maranhão, Itu), animais (jacaré, gambá) e muitas outras.
O cotidiano da aldeia-escola é bem documentado. Apresentam-nos rituais cujo significado permanece oculto: aqui uma explicação só acrescentaria à riqueza cultural do filme. Mas a mensagem fica clara sem necessidade de explicação: ao mostrar uma dança de roda indígena e logo depois uma quadrilha de festa junina, a aculturação deste povo fica patente.

Sueli Maxakali, ao lado do irmão Isael, é uma das principais vozes indígenas no cinema contemporâneo brasileiro. Aqui, a dupla divide a direção com Luisa Lanna, montadora e professora experiente na formação audiovisual em territórios indígenas, e Roberto Romero, antropólogo e documentarista. O quarteto conquistou o prêmio de Melhor Direção no Festival de Brasília, momento no qual Sueli proferiu um discurso poderoso, destacando a frase:
“A gente assistiu a um filme sobre um deputado que fala ‘Ainda estou aqui’. A gente também fala que nós também estamos aqui. O povo Maxakali, o povo Kaiowá estão aqui”
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Entrevistando seu tio, Sueli ouve sobre os não-indígenas querendo desmatar aquelas terras: “Só que nós não podemos entregar tudo, porque a terra é nossa vida”. Em tempos de Marco Temporal, viver da terra e em harmonia com ela é um ato radical de resistência.
Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá é menos um documentário histórico ou político e mais a documentação de um reencontro. Emociona, mas também informa: em suma, faz tudo que um bom documentário deveria fazer.
Revisado por Gabriel Batista
“Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá” é distribuído pela Embaúba Filmes e estreia em 10 de julho nos cinemas. Confira o trailer:
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