O teatro do século XX, em especial na sua primeira metade, experimentou os seus limites. Em um mundo que só produzia e reproduzia, e que destruía a manufatura em troca da reprodução em massa, o teatro se perguntou: qual é o mínimo do humano? Qual o mínimo da experiência? E do corpo? Tudo isso, claro, não significava fazer pouco, mas encontrar a essência, a partícula mínima do sentido bruto, sem mediações. Dentre essas experiências temos Heiner Muller, Samuel Beckett, Eugènie Ionesco, entre outros.

Já no final do século XX, tivemos uma espécie de retorno e, no teatro, isso se deu com a volta ao texto, retorno a uma materialidade que parecia ter se esvaído. Tudo isso culmina em um século XXI de completas liberdades: o teatro, que nunca pode ser qualquer coisa, pode ser tudo. É neste eixo que vejo o jogo dramatúrgico de Jon Fosse em suas peças.
Vai Vir Alguém e outras peças, de Jon Fosse, é uma coletânea de 4 peças do escritor norueguês que foi Prêmio Nobel de Literatura em 2023. O livro foi publicado pela Editora Fósforo, com organização de Cláudia Soares Cruz e tradução da variante norueguesa nynorsk feita por Leonardo Pinto Silva. Os quatro textos incluídos no livro são Vai Vir Alguém, O Nome, Eu Sou o Vento e Cada Um.
De certa forma, podemos localizar todos os textos, escritos entre 1992 e 2024, dentro de uma experiência teatral que joga com a modernidade teatral, desde a experiência brechtiana, passando pelo surrealismo e culminando no teatro do absurdo, diante de uma experiência de vazio a ser preenchido, como se o texto teatral fosse uma espécie de palco em que a experiência não se dá pelo excesso da técnica, mas pela lacuna em que se pinta aos poucos, pelos detalhes.
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Vai Vir Alguém

A primeira peça, aquela que dá nome ao livro, Vai vir alguém, foi a primeira escrita por Fosse, ainda em 1992. O texto conta a história de um casal que compra uma casa isolada de frente para uma colina para viver ali uma vida de casados: sozinhos, felizes, reencenando a utopia do amor.
A história poderia ser uma espécie de Esperando Godot, em que eles permanecem à espera deste ser que “vai vir” e nunca vem. Porém, neste caso, assim que chegam, eles percebem que a casa guarda ecos do passado, mas também são atravessados pela presença de um sujeito, herdeiro dos antigos moradores, que também aparece para desfazer aquele lugar que se pretendia idílico.
As personagens de Fosse nunca possuem nomes. São todos tratados por referenciais de pronomes, artigos e substantivos genéricos: “ele”, “ela”, “o homem”, “a garota”, o segundo jovem”, “um”, “outro, etc.
Um destaque incrível desta primeira peça é que Jon Fosse constroi um ambiente que remete ao quarto de hotel de “O natimorto”, de Lourenço Mutarelli, autor que também já se aventurou pelo teatro. Ali, naquela casa, Fosse traça um espaço como uma construção imaginativa utópica: o amor é a vontade de estar sempre e apenas com o ser amado. E assim se pretende a casa.
Diante dessa impossibilidade, tanto da casa que carrega suas histórias, quanto da presença física de um outro, o que temos é uma cena paranoica, repleta de medo, acusações e disputas, além de sonhos e pesadelos que se (re)constroem diante do real.
O Nome

Logo após o sucesso de Vai Vir Alguém, o livro traz outra peça de Fosse: O Nome, de 1995. Nela, uma jovem volta grávida para casa com o pai do bebê. Lembrando o Volta ao Lar, de Gerald Pinter, a peça mostra uma espécie de espaço em que a memória já não consegue sustentar os laços familiares e o real se aparenta completamente esfacelado.
A narrativa é toda feita pelas lacunas desses personagens que, sem nome, sofrem com falta de dinheiro, ou de doença, ou que julgam os atos dos outros que resolvem sair daquele eixo. Mas qual? A peça se passa numa sala de estar de uma casa do interior, espécie de espaço de transição em que conversas cotidianas, quase todas entrecortadas, são travadas.
Em meio a essa porosidade oca da narrativa, Fosse abre alguns espaços para refletir sobre a vida, mas de forma tão abandonada que aquilo sequer ecoa nos personagens, como no caso:
“Por que os que não nasceram também são humanos
Assim como os mortos também são humanos
Quem é humano
tem que pensar que a humanidade
consiste em todas as pessoas que já morreram
e em todas que ainda não nasceram
e em todas que estão vivas nesse instante”
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Um e Outro
Esta é, talvez, a peça mais “filosófica” do livro. Ela retrata dois homens, “um” e “outro” que estão num barco perdidos no oceano cavando fundo a condição humana enquanto buscam sobreviver.
A maresia, o calor, o vento, criam uma espécie de alucinada vertigem nesses seres que falam mais livremente sobre si mesmos, mas também escondem aquilo que é de mais essencial e que – talvez – ninguém sabe. Por exemplo, em determinado momento, um personagem fala sobre os efeitos do barulho sobre si:
talvez
ou talvez não exista
Nenhum lugar para onde ir
mas também é preciso
entrar em algum lugar mesmo
mas não suporto o barulho
o barulho dos outros
o barulho de tudo que acontece
me pressionando
e me sufocando
Note que, caso se leve o trecho em sua literalidade, estamos diante do teatro como último refúgio do mundo contra o barulho: o dito sem microfone, a escolha das palavras, a necessidade de silêncio impedem que o mundo permaneça em sua saga incontornável a uma ubiquidade, o mundo do excesso, de tudo em tudo lugar ao mesmo tempo. O teatro, então, é este barco a deriva, a última boia contra a pós-modernidade capitalista que, inclusive, nos atola de imagens:
O UM: “Eu prefiro o silêncio
E quero também que
nem tudo seja visível”
O OUTRO: É tudo muito visível”
Cada um
Para finalizar, a coletânea traz o texto mais recente de Fosse, de 2024, que funciona através de espelhamentos em que dois jovens, dois velhos e duas velhas, dialogam entre si e, apesar de parecerem tão próximos – inclusive dando espaço para serem as mesmas pessoas em tempos distintos – estão completamente apartados por tempo, linguagem, memória e espacialidade.
O que mais chama atenção nos textos para teatro de Jon Fosse é algo que podemos também encontrar na sua literatura: uma espécie de turbidez dos sentidos em que os personagens estão atravessados, como se uma névoa atravessasse todos eles, de modo a impedir que experiências sejam compartilhadas.
Imersos em suas ilhas, problemas, planos, pensamentos, todos são solapados por um passado imenso, ou passado nenhum, e um futuro sombrio que encolhe o presente a uma partícula mínima.
Sem saída, apenas vivem e tentam exprimir o pouco que lhes sobra. O mundo é um vazio tal qual Beckett promete, mas no Vai Vir Alguém de Fosse, o Godot realmente vem, mas não muda nada.