Editora: Companhia das Letras – poesia de bolso
Ano: 2016
Páginas: 144
Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir mais as consequências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para a pequena audiência de serão? Voei para cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o Estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão.
Potente. Este talvez seja o melhor adjetivo para falar da poesia de Ana Cristina César. A autora, nascida em 1952 no Rio de Janeiro, fez parte da chamada geração do mimeógrafo da Poesia Brasileira. “A teus pés” foi o último livro de Ana C, escrito em uma mistura de prosa e poesia. Na verdade, a obra reúne três livros de edição independente da autora, além de A Teus Pés propriamente: Cenas de Abril, Correspondência Completa e Luvas de Pelica.
Homenageada deste ano da FLIP, chama a atenção na obra de Ana C. a criação de imagens e o uso das palavras, que parece criar esta série de imagens sucessivas que, para além do entendimento, muito tem a ver com a sensação e a experiência. Esta escolha estética, assim, é necessariamente uma escolha política, uma maneira de ocupar não só a folha com palavras, mas sim o mundo de um modo de existência. O tom confessional, de “cadernos terapêuticos”, como ela chama, nos aproximam do poema e das vivências da autora, que certamente nos remetem às nossas próprias experiências. Vozes se misturam à sua própria, numa transposição de discursos que habitam um mesmo espaço e, ao mesmo tempo em que marcam o tom pessoal, difundem o Eu, movimentando vidas umas em direção às outras.
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Acontece assim: tiro as pernas do balcão de onde via um sol de inverno se pondo no Tejo e saio de fininho dolorosamente dobradas as costas e segurando o queixo e a boca com uma das mãos. Sacudo a cabeça e o tronco incontrolavelmente, mas de maneira curta, curta, entendem? Eu estava fando gargalhadinhas e agora estou sofrendo nosso próximo falecimento, minhas gargalhadinhas evoluíram para um sofrimento meio nojento, meio ocasional, sinto uma dó extrema do rato que se fere no porão, ai que outra dor súbita, ai que estranheza e que lusitano torpor me atira de braços abertos sobre as ripas do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera dividir o corpo em heterônimos – medito aqui no chão, imóvel tóxico do tempo.
Sua escrita pode ser confundida com uma escrita “fácil” – o que talvez tenha a ver com o fato de tratarem de pequenos fragmentos cotidianos, que nos são comuns ou conhecidos de um jeito ou de outro. Na realidade, sua poesia é complexa, densa. Nesta mistura de simplicidade e sofisticação, a potência da poesia de Ana C. reside, também, no que ela tem de possibilidade de afetar o leitor; seja um riso ao perceber a ironia e o jogo das palavras, seja a pequena felicidade ao singeleza do cotidiano, seja o murro no estômago que o relato do sofrimento traz, a poesia de Ana Cristina não passa batida. Afeta, cutuca, mobiliza.
O trágico suicídio da autora, que se atirou da janela de seu apartamento em Copacabana aos 31 anos, muitas vezes serve de chave para a leitura de Ana C., como se seu sofrimento fosse um espetáculo, como se este fosse o gesto que legitimasse toda a sua obra – quando, na realidade, o suicídio (e outros gestos estéticos, políticos, existenciais) estava ali, em sua obra, como gesto de potência: suicídio, poesia, vida – tudo ali, a teus pés.