A Lei de Cotas foi sancionada em 2012. Eu me formei na faculdade em 2013, portanto, não senti o impacto da mudança. Mas me lembro da discussão acerca do então projeto de lei na minha escola de ensino fundamental e médio. Meu professor de História, que também era meu professor preferido, defendia as cotas dizendo que elas eram “reparação histórica”. A professora de Geografia, por outro lado, apelava para o exemplo, dizendo que até mesmo a Dani poderia se autodeclarar negra e pegar a vaga de outro candidato que merecia mais – lembrando que a Dani em questão era a garota loira de olhos azuis da classe. Nem preciso dizer quem desses dois professores me mandou mensagem em 2018 dizendo que se eu não votasse no Bolsonaro o Brasil ia virar uma Venezuela, né?
A verdade é que, mais de uma década após sua promulgação, podemos dizer com certeza que a Lei de Cotas mudou vidas em todas as regiões do Brasil. Mas talvez a diferença seja sentida com mais força na Bahia. Estado de grandes dimensões, tem aldeias indígenas e quilombos, e ainda conta, segundo o último censo, com 80% da população autodeclarada negra. É da Bahia e sobre a Bahia que vem o documentário “Aprender a Sonhar”.
Marina, vinda de uma comunidade quilombola, se interessou pela Medicina após ler sobre plantas medicinais e encontrar semelhança com o que sua mãe fazia todos os dias com as plantas. Conta, com a maior naturalidade, que terminou o terceiro ano do Ensino Médio, fez o vestibular e passou no curso de Medicina da UFBA. Ainda se interessa pelas plantas medicinais.

O caso de Nadjane Cristina é peculiar: ela mora numa ocupação, de modo que fica difícil comprovar sua residência no ato da matrícula. Ela faz parte “dos invisíveis dos invisíveis”, porque não é quilombola nem mora numa aldeia. Sua situação não fora prevista em lei, mas é a realidade e é preciso encará-la.
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Outro caso curioso é o de Ana Paula, que cumpriu medida socioeducativa, ficou sob o Programa de Proteção à Testemunha e teve de refazer a vida longe de suas raízes. Ela cursa Ciências Sociais e sente dificuldade em se enturmar, mas não desiste frente aos obstáculos.
Conhecemos nossas personagens em 2016, e depois as acompanhamos novamente entre 2021 e 2022. Muita coisa aconteceu – como o roubo do notebook de Nadjane com o esboço de seu TCC e todos os documentos do estágio – mas parece que esqueceram que o que aconteceu também foi uma pandemia. Teria sido muito interessante mostrar como as universidades baianas, públicas e privadas, se adaptaram àqueles tempos desafiadores. O único resquício do nosso recente passado pandêmico é a formatura a distância de Marina, com o Juramento de Hipócrates sendo proferido via Zoom.

Como estudo antropológico, “Aprender a Sonhar” tem um pouco de cada: de rituais indígenas ao batuque do Olodum, passando por um sambinha a cappella. Tudo é muito aleatório, com flashes do cotidiano das nossas protagonistas, de modo que sentimos ao final da projeção que vimos histórias potentes, mas não conhecemos a fundo nenhuma personagem. Taquari Pataxó, por exemplo, se resume às danças de seu povo e uma curta cena na Faculdade de Direito.
“Aprender a Sonhar” é um documentário cíclico, mas não satisfatório. Tinha muito potencial, mas acabou sendo um produto audiovisual esquecível. Resumido pelo diretor Vitor Rocha como “um manifesto afro-indígena”, o filme tem pelo menos um trunfo: mostrar que não é preciso se separar dos saberes ancestrais para obter um diploma universitário. É sobre ocupar os espaços, somando com nossas bagagens.
“Aprender a Sonhar” chega aos cinemas em 02 de outubro. Confira o trailer:
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