Baseado no universo de Nelson Rodrigues, o espetáculo “Cachorro!”, escrito por Jô Bilac, explora as profundezas de um triângulo amoroso, usando o melodrama para revelar as falhas mais íntimas da natureza humana.
A peça conta a história do caso secreto entre Almeidinha e Solange, que mantém um romance com o melhor amigo de seu marido. Sem suspeitar do triângulo amoroso em que está envolvido, Apoprígio convida Almeidinha diariamente para almoçar em sua casa, intensificando a paixão entre o jovem e sua esposa. Presos nesse emaranhado, os três personagens caminham para um desfecho tipicamente rodrigueano, onde a tragédia é inevitável. No fim, não restará nada — nem lágrimas, nem velas, apenas o silêncio.

Para saber um pouco mais sobre o espetáculo, o Jornal Nota conversou com a atriz Julia Raposo, protagonista do espetáculo. Confira:
Para começar, a descrição do espetáculo Cachorro! menciona uma inspiração no universo do Nelson Rodrigues. O que de Nelson tem o espetáculo e o que não tem?
O Jô consome toda a obra rodriguiana com o objetivo de criar uma identidade para o espetáculo. Em Cachorro! você encontra detalhes linguísticos, nomes, a estrutura dramatúrgica e o final trágico. A única coisa que não tem é o próprio Nelson. Se você é uma pessoa que não conhece o universo rodriguiano, vai muito provavelmente pensar que a autoria é dele. As características estão todas ali e o Jô se apropria delas com maestria pra remontar, à maneira dele, as perversões psicológicas e a tragédia familiar que são o legado de Nelson.

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Qual o processo de criação da peça? Como texto, corpo e cena foram estruturados?
Nós do elenco fizemos parte da Residência da Cia. dos Atores que aconteceu no ano de 2024 e que tinha como foco de estudo a obra do Jô Bilac. O processou começou com uma cena, sobre a qual eu e Caique nos debruçamos e trabalhamos unicamente nela durante dois ou três meses, e que apresentávamos semanalmente na Residência e recebíamos feedback do Cesar Augusto, nosso diretor e do Marcelo Olinto, nosso figurinista e que também atua como diretor na Residência. Quando ficamos satisfeitos com o resultado, seguimos para um trabalho de mesa com o Cesar e começamos a montar o restante do espetáculo.
Ao longo de sete meses o espetáculo foi trabalhado e pesquisado sob a orientação do Cesar e do Olinto, que foram essenciais para a construção sólida do jogo de relações, que somadas ao universo moral de cada personagem, se tornam a grande engrenagem que move o espetáculo. Fizemos duas temporadas como resultado do processo da Residência na Panorâmica Jô Bilac e para a nossa estreia independente na Sede tivemos o trabalho impecável da Camila Olivieri, nossa assistente de direção e da Milena Codeço, nossa preparadora corporal, que afinou os nossos corpos e nos ajudou a aprofundar na violência trágica que o texto demanda.

Contemporaneamente, poderíamos dizer que o casal tradicional monogâmico é formado pelo casal e seus amantes. Como que o triângulo amoroso estrutura a peça Cachorro!?
O triângulo amoroso é a estrutura da peça. Ela é inteiramente construída com base nas relações e nas ligações entre as personagens. Não existem solos, as personagens não chegam a se apresentar individualmente, todas as características particulares emergem a partir das situações e das armadilhas em que se enredam. Conhecemos profundamente cada personagem a partir da visão que as outras personagens têm sobre aquele indivíduo e as leituras são inevitavelmente intermediadas pela relação. É um jogo no qual todos são narradores não confiáveis e o público acaba tendo que decidir por si próprio em quem acreditar.
A mulher, para Nelson Rodrigues, vive um paradoxo que inverte a pirâmide moral: quando ela é santa, ela é puta e quando ela é puta, é santa. Como é rever esse papel da mulher na contemporaneidade?
A Solange é uma mulher psicologicamente consciente de si mesma e das escolhas que faz. A principal lealdade da Solange é a que ela tem consigo mesma, e a infidelidade não vem como ponto de fuga de uma relação conjugal opressiva ou violenta, mas pela busca da liberdade sexual e do prazer.
Nos últimos anos o conservadorismo vem crescendo de forma exponencial no Brasil, então acho que é sempre interessante ver uma mulher no palco assumindo comportamentos que são socialmente aceitos quando partem de um homem.
Pra nossa montagem o Jô deu um final inédito pra peça e com a proposta de encenação do Cesar, o nosso objetivo é fazer com que essa mulher subverta expectativas e tenha um desfecho triunfante.

Diante da iminente tragédia que Cachorro! anuncia, como você imagina que esse mundo poderia ser “pacificado”? Com a revisão da ideia de monogamia compulsória?
Acredito que esse mundo não pode ser pacificado. Na verdade, não acho que ele precise e nem deva ser. Tem uma citação do Nelson que eu gosto muito em que ele diz “A ficção, para ser purificadora, tem que ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. (…) E no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido.
Para salvar a plateia é preciso encher o palco de assassinos, adúlteros, de insanos, e, em suma, de uma salada de monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los.”. Com a herança melodramática que a dramaturgia brasileira tem, as histórias de traição moram no nosso imaginário coletivo e a tragédia familiar oriunda dela faz parte do mito cotidiano que o Jô explora em Cachorro! e que deixa o público na ponta da cadeira. Esse mergulho que ambos os autores fazem no subterrâneo do coração do espectador permite que seja oferecida a plateia uma perspectiva apurada sobre a atemporalidade das relações humanas e da sujeira que existe em cada um nós.

Para você, qual a coisa mais importante que Cachorro! traz para o nosso mundo atual?
Cachorro! é um resgate do teatro brasileiro. Ter um autor contemporâneo, tão brilhante quanto o Jô, mergulhando profundamente no universo de Nelson Rodrigues e criando um diálogo com gerações mais novas ao atualizar questões que hoje em dia ficaram, de certa forma, datadas, é uma forma de preservar a nossa cultura. Digo “de certa forma datada” porque em muitos momentos o texto faz a gente rir involuntariamente de absurdos que são ditos, e coloca em perspectiva o fato de que na mentalidade sociocultural ainda permanecem certos mitos que as vezes julgamos como coisa do passado – mas que geram identificação e são válidos de serem discutidos.
Diga 3 motivos para as pessoas assistirem ao espetáculo numa próxima temporada?
Eu diria que os três motivos são, em primeiro: diversão. Porque a peça é extremamente divertida apesar de abordar temas indigestos. Em segundo: surpresa. Por termos três narradores não confiáveis, você vai passar o espetáculo inteiro com o coração acelerado, sentado na ponta da cadeira à espera da tragedia iminente e ainda assim se surpreender quando ela chegar. E em terceiro: se você se interessa por uma história de amor – daquelas que navegam pelas águas mais escandalosas, que mergulham na traição, na sujeira e na brutalidade, então essa peça é pra você. Uma tragédia carioca que estabelece uma conversa aberta com o público e explora as perversões psicológicas que um dia foram responsáveis por revolucionar o teatro brasileiro – um espetáculo que fala da vida como ela é.

