“Fuga”, esse é o nome da exposição, introduzida por Fátima, que representa uma mediadora cultural, no espetáculo que leva o mesmo nome: Fuga.
Durante sua introdução, Fátima questiona o público sobre o que é o Fim. Eu, fico contido, torcendo para que não me pergunte enquanto elaboro em meu íntimo e me questiono, o que é o fim. Mas de qualquer forma estou alerta e imagino que o espetáculo fará isso conosco novamente, nos deixará atentos para acompanhar essa narrativa. Ainda nessa introdução, Fátima compartilha que gosta muito de Octavia Butler(1947-2006), escritora que inspira o espetáculo com seu romance Parábola do Semeador(1995), isso me desperta uma nova curiosidade.
Não conheço o trabalho de Butler, mas numa breve pesquisa sobre o romance distópico, descubro que esse se passa em um futuro próximo (2024–2027), em que a sociedade colapsou devido às mudanças climáticas, desigualdade extrema, corrupção governamental e violência generalizada, ou seja, o futuro distópico de Butler, é o meu presente. Fico imaginando como todo esse conteúdo será apresentado, até que temos a oportunidade de entrar na sala de espetáculo. Lá, estamos numa sala de exposição de um museu, ainda sem obras, sem beleza, somente um meteorito e um eco vazio para admirar.

O espetáculo inicia e somos apresentados a Medusa, da mitologia grega: uma mulher violentada por Poseidon e depois punida por Atena. Novamente, fico intrigado com a relação de Medusa com a peça, mas ainda estamos no começo; acredito que muita coisa virá. A peça engrena e somos apresentados a Udilene, que trabalha no museu e conhece todos seus detalhes. Ela é responsável por trazer o tom agridoce do espetáculo, como uma mãe zelosa, que precisa batalhar, ao mesmo tempo que acompanha sua filha, mas preocupada com a segurança dela. Joy Catharina que dá vida a Udilene, me encanta por suas nuances e a partitura corporal utilizada em algumas cenas, a dinâmica entre ela e Tricka Carvalho nos envolve cada vez mais, permitindo-nos entrar naquele cotidiano caótico.
Mas acredito que não é apenas a excelente performance em cena que me envolve, mas também o texto delas, me levando a um lugar-comum, quase como se eu visse os meus em cena. Durante essa narrativa tão envolvente, temos as entradas brilhantes da repórter vivida por Jennifer Souza que acompanha o caos instaurado pela cidade de São Paulo, após diversos alagamentos, e esforço hercúleo de Aline, a bombeira que tenta chegar ao trabalho. Novamente me sinto em cena, vendo os meus sofrendo com o caos causado pela crise climática.

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A partir desse momento, consigo entender a conexão dramatúrgica de Louise Belmonte entre a referência de Butler e a proposta de Fuga, que busca nos conectar com essa crítica profética da crise climática e nosso cotidiano áspero. Belmonte, junto a suas parcerias criativas, utiliza Medusa como alegoria da violência sistêmica, espelhando a vulnerabilidade das personagens em um sistema que as oprime. Dessa forma, concluo que maior que a clareza na construção dramatúrgica de Belmonte, – a dramaturgia tem uma linha narrativa muito bem desenhada – , é o foco em desenvolver a empatia do público com a peça, penso que isso também se deve à influência de Butler.
Mas a dramaturgia e as boas atuações, não estão isoladas. O trabalho desenvolvido por Beatriz Barros na encenação e direção-geral contribui como força motriz para a potência do espetáculo. Há, claramente um desenho cênico e uma escolha de coreografia das atrizes que elevam o espetáculo, transportando-nos para abaixo da superfície da água, vendo a luz do sol tocar a água, em um rito que invoca Oxum, associada à beleza e à fúria contida.
No espetáculo, Medusa e Oxum são faces da mesma moeda: a força feminina que destrói para reconstruir. Se, em alguns momentos a dualidade Medusa/Oxum corre o risco de simplificação, a direção contorna isso através da complexidade física que exige das atrizes – cada gesto contendo tanto a dor quanto a resistência.
Todo esse trabalho é realizado com uma sonoplastia ritualística e uma luz quase onírica, elevando a experiência imersiva e atingindo seu ápice quando a combinação de luz pulsante, movimento coreografado e som subaquático nos faz fisicamente sentir a ambiguidade do elemento água: ao mesmo tempo maternal e sufocante, tal como a representação das divindades femininas.

O espetáculo finaliza e saio do teatro como se meu corpo estivesse abaixo de uma cachoeira, por um longo período. Isso porque Fuga não se contenta em ser apenas um espelho do nosso tempo fragmentado, ele nos atravessa como um raio, iluminando as fissuras que tentamos ignorar. Se a Medusa da mitologia transformava homens em pedra, esta Medusa contemporânea nos petrífica diante das violências que naturalizamos. O espetáculo de Louise Belmonte e Beatriz Barros não termina quando as luzes se acendem; ele ecoa como um alerta subaquático sob nossas estradas de concreto, um chamado à superfície que insistimos em não ouvir. Afinal, como perguntou Fátima no início: o que é o Fim? Talvez a resposta esteja justamente naquilo de que não conseguimos fugir.
Sinopse:
Durante uma tempestade que paralisa a cidade de São Paulo, trabalhadoras de um Museu ficam presas no trabalho, enquanto outras tentam chegar na instituição museológica a qualquer custo. Impedidas de retornar para casa por conta do desastre climático, elas seguem trabalhando ou seguem tentando chegar de qualquer forma ao trabalho, movidas pela urgência de garantir o sustento em meio ao caos. A partir dessa situação-limite, o espetáculo revela, de forma contundente, como o racismo ambiental incide de maneira desigual sobre os corpos periféricos.
O público acompanha, em tempo real, a rotina de trabalho das personagens, que é gradualmente tomada por uma emergência climática. O cotidiano cede espaço ao colapso, e a dramaturgia se desloca da estabilidade à ruína, do ordinário ao apocalíptico. Espaço, corpo e linguagem se transformam com a crise, instaurando uma experiência cênica sensorial, imersiva e politicamente urgente.
Ficha Técnica:
Idealização: Beatriz Barros e Jennifer Souza
Encenação e Direção geral: Beatriz Barros
Assistência de Direção: Jennifer Souza
Dramaturgia: Louise Belmonte
Colaboração dramatúrgica: Jennifer Souza, Julia Pedreira, Joy Catharina, Tricka Carvalho e Beatriz Barros
Elenco: Jennifer Souza, Julia Pedreira, Joy Catharina e Tricka Carvalho
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Lua Oliveira
Direção de Movimento e Preparação Corporal: Castilho
Cenografia: Maíra Sciuto
Assistente de Cenografia: Matheus Muniz
Cenotécnico: Alicio Silva
Figurino: Ayomi Domenica
Costureiro: Jonhy Karlo
Assistente de figurino: Regina Torres
Videografia: Gabriela Miranda
Desenho e Operação de Luz: Matheus Brant
Operação de Luz e Vídeo: Matheus Espessoto
Operação de Som: Caike Souza
Fotografia: Duda Portella
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes
Produção: Corpo Rastreado | Jack dos Santos

