Em “Açougueira”, Marina Monteiro traz reflexões dessa natureza e tantas outras reflexões acerca de gênero
A rainha Elza Soares disse em uma de suas músicas que:
“A carne mais barata do mercado, é a carne negra”.
Uma carne negociada ainda viva, retalhada inteira, sem precisar eviscerar. A carne ensopada, pendurada em um gancho sujo, exposta aos ganchos inescrupulosos e mãos não merecedoras.
Eu estou falando, é claro, a partir da minha vivência enquanto mulher negra, a passar pelos lugares e sentir que me olham como um pedaço de carne, sem essência alguma, como se não houvesse nada a mais dentro. Enquanto viam fora, o importante era dentro. Dentro que tudo acontece, mas que quase ninguém quer ver.
Leia a “Açougueira”!
Ler a “Açougueira” é um encontro com reflexões dessa natureza e tantas outras reflexões acerca de gênero e da condição da mulher em um lugar “de dentro”, e quase nada “de fora”.
É preciso se aprofundar na leitura feita de dentro para entender a forma e o conteúdo, que por sua vez estão completamente associados. A cadência da escrita é forte e muito bem estruturada.
Você ouvirá do fundo, a voz da açougueira e poderá acompanhar de maneira visual todos os fatos de maneira minuciosa, e, porque não dizer, estética. Ela é uma mulher que está fora dos padrões impostos pela heteronormatividade.
“Estranha de estranha. Grande demais pruma mulher. Bruta demais pruma mulher. Decidida demais pruma mulher. Seca, fechada, pesada, rocha. Quase não saia daquele açougue. Tinha a cara fechada de braba. Cortava os bichos sem dó. A açougueira mexia naqueles ossos e carnes. Separava as partes. Tinha força. Tem quem já viu ela cortando um boi vivo todinho na unha”.
E o que mulher pode ser? O que nos cabe nesse mundo? Servir e obedecer? Servir enquanto carne? Obedecer enquanto carne?
Por não ser o que esperavam que ela fosse, a apontaram e a acusaram, afinal a açougueira, que segurava um cutelo e via o sangue jorrar, seria capaz de “mexer” com a carne do homem daquele jeito.
Mulheres “de fora” e “de dentro”
E é nessa contradição que nos veem mulheres “de fora”, mas nunca “de dentro”. Somos capazes de muito, mas para que fôssemos “pouco”, então queimaram muitas de nós em fogueiras, arrastaram a carne pelas ruas, condenaram sem provas e fizeram elas acreditarem que não podiam fazer quase nada, exceto sorrir e acenar. Não poderiam seguir em frente e tiveram toda sua potência interrompida.
Se falamos alto, somos mal-educadas. Quando nos defendemos nosso ponto de vista, somos intransigentes. Caso nos inconformamos com determinada situação, somos sentimentais demais. Mas de fato, esses são artifícios para nos impor lugares, comportamentos e continuar a nos submeter aquilo determinado como politicamente correto.
Ler a “Açougueira” foi um corte certeiro na carne! Desses que a gente lava com água corrente, coloca unguento feito por vó, amarra um pano limpo para estancar o sangue e aprecia a cicatriz pro resto da vida, porque quando a gente toca nela é sinal que a gente é “dentro” e fora, quase não interessa.