Crônica publicada na obra Entrevistas (Rocco, 2007), reunindo entrevistas de Clarice Lispector
Esta grafia, Xico Buark, foi inventada por Millôr Fernandes, numa noite no Antônio’s. Gostei como quando eu brincava com palavras em criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo: um por achar engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco melancólica de Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os outros o chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de sorrir conservando muitas vezes os olhos verdes abertos e sem riso. Ele não é de modo algum um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e sempre jovem que se chamasse Garoto, Francisco Buarque de Holanda seria da raça montanhesa dos garotos.
Marcamos encontro às quatro horas porque às cinco Chico tinha uma lição de música com Vilma Graça. Há um ano está estudando teoria musical e agora começará com o piano. Estávamos os dois em minha casa e a conversa transcorreu sem desentendimentos, com uma paz de quem enfim volta da rua.
Clarice Lispector – Você viveu ainda tão pouco que talvez seja prematuro perguntar-lhe se você teve algum momento decisivo na vida e qual foi.
Chico Buarque – Eu sou ruim para responder. Na verdade tive muitos momentos decisivos, mas creio que ainda sou moço demais para saber se eram de fato decisivos esses momentos. No final de contas, não sei se eles contaram ou não.
Clarice Lispector – Tenho a impressão de que você nasceu com a estrela na testa: tudo lhe correu fácil e natural como um riacho de roça. Estou certa se pensei que para você não é muito laborioso criar?
Chico Buarque – E não é. Porque às vezes estou procurando criar alguma coisa e durmo pensando nisso, acordo pensando nisso – e nada. Em geral eu canso e desisto. No outro dia a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo. E como é seu trabalho?
Clarice Lispector – Vem às vezes em nebulosa sem que eu possa concretizá-lo de algum modo. Também como você, passo dias ou até anos, meu Deus, esperando. E, quando chega, já vem em forma de inspiração. Eu só trabalho em forma de inspiração.
Chico Buarque – Até aí eu entendo, Clarice. Mas a mim, quando a música ou a letra vêm, parece muito mais fácil de concretizar porque é uma coisa pequena. Tenho a impressão de que se me desse ideia de construir uma sinfonia ou um romance, a coisa ia se despedaçar antes de estar completa.
Clarice Lispector – Mas Chico, aí é que entra o sofrimento do artista: despedaça-se tudo e a gente pensa que a inspiração que passou nunca mais há de vir.
Chico Buarque – Se você tem uma ideia para um romance, você sempre pode reduzi-lo a um conto?
Clarice Lispector – Não é bem assim, mas, se eu falar mais, a entrevistada fica sendo eu. Você, apesar de rapaz que veio de uma grande cidade e de uma família erudita, dá a impressão de que se deslumbrou, deslumbrando os outros com sua fala particular. O que quero dizer é que você, ao ter crescido e adquirido maior maturidade, deslumbrou-se com as próprias capacidades, entrou numa roda-viva e ainda não pôs os pés no chão. Que é que você acha: já se habituou ao sucesso?
Chico Buarque – Tenho cara de bobo porque minhas reações são muito lentas, mas sou um vivo. Só que pôr os pés no chão no sentido prático me atrapalha um pouco. Tenho, por exemplo, uma pessoa que me explica o contrato e não consigo prestar atenção a certas coisas. O sucesso faz parte dessas coisas exteriores que não contribuem nada para mim. A gente tem a vaidade da gente, a gente se alegra, mas isso não é importante. Importante é aquele sofrimento com que a gente procura buscar e achar. Hoje, por exemplo, acordei com um sentimento de vazio danado porque ontem terminei um trabalho.
Clarice Lispector – Eu também me sinto perdida depois que acabo um trabalho mais sério.
Chico Buarque – Tenho uma inveja: o meu trabalho de música está exposto a um consumo rápido e eu praticamente não tenho o direito de ficar pensando numa ideia muito tempo.
Clarice Lispector – Talvez você ainda mude. Como é que Villa-Lobos criava? Seria interessante para você saber.
Chico Buarque – Sei alguma coisa. Por exemplo, uma frase dele que Tom Jobim me contou: diz que Villa-Lobos estava um dia trabalhando na casa dele e havia uma balbúrdia danada em volta. Então o Tom perguntou: como é, maestro, isso não atrapalha? Ele respondeu: o ouvido de fora não tem nada a ver com o ouvido de dentro. É isso que eu invejo nele. Gostaria muito de não ter prazo para entrega das músicas, e não fazer sucesso: você gostaria, por exemplo, de sair para a rua e começar a dar autógrafos no meio da rua mesmo?
Clarice Lispector – Detestaria, Chico. Eu não tenho, nem de longe, o sucesso que você tem, mas mesmo o pequeno que tenho às vezes me perturba o ouvido interno.
Chico Buarque – Então estamos quites.
Clarice Lispector – Todas as mães com filhas em idade de casar consentiriam que casassem com você. De onde vem esse ar de bom rapaz? Acho, pessoalmente, que vem da bondade misturada com bom-humor, melancolia e honestidade. Você também tem o ar de quem é facilmente enganado: é verdade que você é crédulo ou está de olhos abertos para os charlatões?
Chico Buarque – Não é que eu seja crédulo, sou é muito preguiçoso.
Clarice Lispector – O que é que você sentiu quando o maestro Karabtchewsky dirigiu A Banda no Teatro Municipal?
Chico Buarque – Claro que gostei, mas o que me interessa mesmo é criar. A intenção de Karabtchewsky foi das melhores, inclusive corajosa. Eu quero ver ainda a coisa se repetir com outros compositores populares.
Clarice Lispector – Você foi precoce em outras manifestações da vida? Fale sem modéstia.
Chico Buarque – Não, tudo o que eu fiz como garoto é de algum modo ligado com o que eu faço hoje, isto é, versinhos.
Clarice Lispector – Você quer fazer um versinho agora mesmo? Para você se sentir não vigiado, esperarei na copa até você me chamar.
Chico riu, eu saí, esperei uns minutos até ele me chamar e ambos lemos sorrindo:
Como Clarice pedisse
Um versinho que eu não disse
Me dei mal
Ficou lá dentro esperando
Mas deixou seu olho olhando
Com cara de Juízo Final.
Clarice Lispector – A banda lembra música de nossas avós cantarem: tem um ar saudoso e gostoso de se abrir um livro grosso e encontrar dentro uma flor seca que foi guardada exatamente para durar. De onde você tirou essa modinha tão brasileira? Qual a fonte de inspiração?
Chico Buarque – Não sei não, é uma coisa difícil de conscientizar. Lembro da banda mesmo não tendo vivido no interior, mas atrás de minha casa tinha um terreno baldio onde às vezes havia circo, parque de diversões, essas coisas.
Clarice Lispector – Vi você na primeira passeata pela liberdade dos estudantes. Que é que você pensa dos estudantes do mundo e do Brasil em particular?
Chico Buarque – No mundo é para mim difícil de falar, mas aqui no Brasil eu sinto em todos os setores um apodrecimento e a impossibilidade de substituição senão por mentalidades completamente jovens e ainda inatingidas por essa podridão. Aqui no Brasil só vejo esta liderança. Um rapaz do New York Times entrevistou-me e perguntou: está bem, vocês não querem censura nem repressão nem os métodos arcaicos de educação; mas se vocês ganharem, quem vai substituir as autoridades? Por incrível que pareça, o mundo político está envolvido por essa decadência e acomodação. E você? Eu também te vi na passeata.
Clarice Lispector – Fui pelos mesmos motivos que você. Mudando de assunto, Chico, você já experimentou sentir-se em solidão? Ou sua vida tem sido sempre esse brilho tão justificado? Chico, um conselho para você: fique de vez em quando sozinho, senão você será submergido. Até o amor excessivo dos outros pode submergir uma pessoa.
Chico Buarque – Também acho e sempre que posso faço a minha retirada.
Clarice Lispector – Na música chamada clássica, apesar de ela englobar compositores aos quais o classicismo não poderia ser aplicado, nessa música o que você prefere?
Chico Buarque – Aí não é questão de preferência, é costume para mim. Tenho sempre à mão um Beethoven.
Clarice Lispector – Sua família preferia que você seguisse a vocação de outros talentos seus que em aparência, pelo menos, são mais asseguradores de um futuro estável?
Chico Buarque – No começo sim. Logo que entrei para a arquitetura, quando comecei a trocar a régua T pelo violão, a coisa parecia vagabundagem. Agora (sorri) acho que já se conformaram.
Clarice Lispector – Você está compondo agora alguma coisa e com letra sua mesma? Sua letra é linda.
Chico Buarque – Estou na fase de procura. Ontem acabei um trabalho que era só de música, que exigia prazo. Para uma canção nova, eu estou sempre disponível.
Clarice Lispector – No domínio da música popular, quem seria por sua vez o seu ídolo?
Chico Buarque – Muitos, e é por isso que é difícil citar.
Clarice Lispector – Seu pai é um grande pai. Quem mais na sua família eu chamaria de grande, se conhecesse?
Chico Buarque – Minha mãe, apesar de ter um metro e cinquenta e poucos de altura. Eu li muito e papai sempre me estimulava nesse sentido.
Clarice Lispector – Qual é a coisa mais importante do mundo?
Chico Buarque – Trabalho e amor.
Clarice Lispector – Qual é a coisa mais importante para você, como indivíduo?
Chico Buarque – A liberdade para trabalhar e amar.
Clarice Lispector – O que é amor?
Chico Buarque – Não sei definir, e você?
Clarice Lispector – Nem eu.
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Fonte:
– LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.