Dôra, Doralina, publicado em 1975, é um romance escrito por Rachel de Queiroz (Fortaleza, CE, 1910 – Rio de Janeiro, RJ, 2003), também autora de Memorial de Maria Moura (1992), O quinze (1930) e As três Marias (1939). Em 1977, foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e, além disso, em 1993, recebeu o prêmio Camões.
Conhecida por tecer memoriais com a sua escrita, neste romance de formação, narrado em primeira pessoa, Queiroz apresenta as vivências de Maria das Dores, jovem da fazenda Soledade, filha de uma mãe autoritária, que nos conta as suas dores da adolescência até a fase adulta, por meio de flashbacks, intercalando-se entre passado e presente, do interior à capital cearense, estendendo-se ao Rio de Janeiro, caracterizada como uma narrativa em movimento.
A história é dividida em três partes: O livro da Senhora, o qual retrata as vivências de Dôra na fazenda, o mau relacionamento com a mãe e o casamento por conveniência; O livro da Companhia, quando Dôra vai embora do campo, começa a trabalhar numa pensão e as aventuras na Companhia de teatro e O livro do Comandante, relatos de sua estadia no Rio de Janeiro.
Tendo o sertão cearense como pano de fundo, a obra é composta por temas corriqueiros nos textos da autora como o coronelismo, o aprisionamento feminino, críticas político-sociais. Suas personagens são fortes e guerreiras, e enfrentam as amarras do destino para contar a própria história, tomando as rédeas e seguindo em frente. Dôra largou a vida nas Aroeiras para construir uma história só sua, sem decisões dos outros, mas que ela pudesse fazer suas escolhas sem o falatório dos vizinhos e muito menos aprisionada em uma vida que não era dela.
“Mal sabia ela que a minha saída de casa não tinha sido um desgosto dos que passam. Que eu tinha cortado o cordão do umbigo que me prendia à Soledade para sempre e nunca mais. Da Soledade e a sua dona, eu agora só queria distância e as poucas lembranças.” Dôra, Doralina – Rachel de Queiroz
Assim como em Memorial de Maria Moura, em um ato de coragem Maria assume a liderança de um bando de cangaceiros e, fugindo, transfigura-se para sobreviver ao ambiente grosseiro. Dôra abandona o lugar de nascimento e, embora fuja dessa transfiguração, o drama familiar é tema em comum entre as obras as quais têm como fio condutor a memória. É possível encontrar nessas memórias uma busca pelo pertencimento e a tentativa de cortar as raízes a fim de encontrar a própria identidade.
A obra alterna entre o espaço urbano e o espaço rural; de um lado está a fazenda e do outro a cidade grande. A cidade idealizada pelo número de oportunidades e modernidades, enquanto o espaço do campo se mantém como uma prisão e descontentamento, visto que a rudeza do ambiente, na época, não favorece a mulher, mas o leitor identifica essa dificuldade nos dois ambientes.
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A transformação na vida monótona da personagem para outra caótica, causa mudanças que desconstroem e reconstroem o indivíduo. Através de seus relatos é feita a comparação sobre a dor da viuvez estar próxima, para algumas mulheres, das dores de um parto, a morte como forma de libertação e de renascimento. Com a morte do marido, Dôra estaria nascendo de novo, a escolha de não usar o luto representa a mais plena alegria e desprendimento daquele elo. Essa reflexão da personagem ganha outro sentido em outro momento de sua vida, em que a morte se faz presente mais uma vez.
“[…] doer, dói sempre. Só não dói depois de morto, porque a vida toda é um doer.”
Dôra, Doralina – Rachel de Queiroz
É nesse estilo regionalista no qual retrata as raízes nordestinas, que não apaga as tradições, nem exclui os dialetos característicos, que a simplicidade se torna marca registrada da autora o que não diminui a veracidade dos fatos, mas contribui para a história. A linguagem direta, sem rodeios, representa a essência cultural transmitida ao leitor, mas não só apresenta as variações linguísticas do sertão, bem como de outros estados; do Norte e Sudeste, além do Sul, um encontro cultural por meio de Doralina.
O sobrenatural em Dôra, Doralina reflete no psicológico dos personagens que se desfazem da capa protetora, expondo medos e aflições. Esse misticismo presente na obra por meio das contações de histórias, de encontro ao protagonista sugere uma batalha entre os fantasmas do passado e do presente. Demonstrando uma personagem sempre em clímax, presa às marcas do passado e aflita pelo amanhã.
“Bem, nisso tudo o que eu quero dizer é que antes de eu entrar na Companhia, tinha meu corpo como se fosse uma coisa alheia que eu guardasse depositada, e só podia dar ao legítimo dono, e depois dar a esse dono era só dele, não adiantava eu querer ou não, porque o meu corpo eu não tinha o direito de governar, eu vivia dentro dele mas o corpo não era meu.” Dôra, Doralina – Rachel de Queiroz
Portanto, Dôra, Doralina é uma reflexão sobre as relações de gênero, a busca por pertencimento, as tradições sertanejas, o papel da mulher do sertão na sociedade e o retrato do teatro brasileiro, com personagens cativantes que conquistam o leitor. Em 1983, ganhou uma adaptação para o cinema, dirigida por Perry Salles e protagonizada pela atriz Vera Fisher.
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