“A filha do palhaço” de Pedro Diógenes, estreia em 30 de maio e poderia ser descrita exatamente por essa frase se estivéssemos iniciando uma conversa rasa sobre um filme que aborda essa ironia sem responsabilidade alguma.
Antes de adentrar à trama criada pelo diretor, ao lado de Amanda Pontes e Michelline Helena, preciso destacar a intensidade da direção de arte de Thaís de Campos somada à direção de fotografia de Victor de Melo que nos suga por completo no início do filme. Os destaques esverdeados das cenas iniciais despertam algo entre o desconforto, o nojo e o desconhecido. Conforme as cenas se desenrolam, isso se comprova. Joana (Lis Sutter) é uma garota de 14 anos que vai de encontro ao seu pai (Demick Lopes), que trabalha o humor a partir de Silvanelly, personagem inspirada caracteristicamente na extravagante Raimundinha, criada e interpretada por Paulo Diógenes, um dos mais reconhecidos humoristas do Ceará.
A dificuldade de abrir e fechar as portas logo no início da trama já é anúncio de que certas coisas não vão bem. Falas são desnecessárias quando imagem e gesto se mostram completos. O longa aborda temas como estes mas, como escrevi no começo deste texto, seria óbvio o bastante para deixarmos o título nos entregar o todo que segue. A relação de Joana e seu pai (de quem só conheceremos o verdadeiro nome ao final do filme) vai se abrindo lentamente, como qualquer relação. Depois do verde intenso que nos traga, somos apresentados à frieza do azul das cenas seguintes, pingados aos poucos sobre a tela, começando com a peruca azul que substituí o lugar de Joana, caminhando para a iluminação completa no raiar do dia, realçando a distância que existe entre as personagens.
Cenas rápidas e cortes abruptos ilustram a complexidade do ser humano que, destacados pelas cores, vão se tornando orgânicos até que estes lugares e cortes se mesclem por completo. A trilha sonora também participa desta construção durante o filme quando escutamos, por exemplo, ecoar das ruas frases de Getúlio Abelha como:
“Só me leva pra casa
Eu vou entender
Se não der em nada
Eu já tô bem cansada
Não me leve a mal
Se eu ficar calada”
Acompanhamos o desenrolar de relações que se costuram e se estranham a todo momento. As tentativas de proximidade nessa relação sempre vêm acompanhadas do vermelho intenso iniciados pela filha, que parece ter muito mais interesse em conhecer seu genitor. Inclusive, algumas das cenas mais afetuosas se dão na cozinha do apartamento do pai, quando são descobertos gostos e desgostos que intensificam a complexidade dessa relação.
Joana parece ter ido à procura de seu pai por estar perdida e, provavelmente, sob a influência de querer descobrir de onde vem sua “intensidade” – destacada por sua mãe, Cristina (Ana Luiza Rios) ao final da trama.
A aproximação dos afetos é sutil. Quando travestido em Silvanelly notamos a influência da garota sobre o pai. A sequência de toda cena que nos aproxima do mistério mexe no roteiro da apresentação: ora o celular e as redes sociais, ora a relação com o pai e o motivo para ter ido embora.
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Acrescidos aos destaques visuais que envolvem por completo o espectador, como os figurinos de Lia Damasceno – destaque para a camisa de Keith Haring que amarram toda trama em uma das cenas –, a escolha das ruas, bares e lugares onde as apresentações de Silvanelly acontecem nos mostram o evidente conhecimento geográfico de Pedro Diógenes. Embora não seja evidente para todos, o centro de Ceará se torna um componente ativo na história que assistimos, destacado pelo ator Demick Lopes. Aliás, a aparição em cena de Jesuíta Barbosa e Jupyra Carvalho conversa claramente com esta noção quando é anunciado que a peça as personagens divulgam acontecerá no “Teatro do Porão”, provavelmente mencionando o Porão do Theatro José de Alencar.
Um dos bares onde Silvanelly se apresenta acaba por se tornar um estopim na relação entre pai e filha e, Pedro, inclusive, teve a delicadeza de tangenciar relações políticas durante estas cenas que acontecem em sequencias inacreditáveis: a descoberta do avó oculto, a agressividade do torcedor assíduo e o derramar da filha em raiva. Aqui o elo acontece. Por mais que o filme nos apresente apenas uma semana de convivência entre estas pessoas, somos capazes de identificar o “giro da chave” onde o “eu confio em você” se torna real. A crueza do pai se desmontando no meio da rua e a cumplicidade depois do choro da menina; a dose de cachaça como o “pode respirar, está tudo bem”, o arremate das manifestações políticas posicionadas na parede do bar e, por fim o “brinde ao amor” proferido por palhaços (Jesuíta Barbosa e Jupyra Carvalho).
O filme segue sempre na direção das escolhas que fazemos ao longo da vida, e quais são as consequências destes lugares. “Assum preto” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) cantado à capela por Demick Lopes abre ainda mais as complexidades do ser humano. Mesclado às ondas do mar, nos apresenta feridas duras de tratar. As relações se tencionam, e sempre Joana busca o apaziguamento. É ela quem tem coragem de segurar a mão e mergulhar. É ela quem pergunta sobre a dor. É ela quem precisa saber.
Mesmo que a atuação de Lis Shutter não tenha tanto destaque no lugar intenso, igualmente embala o desenrolar da trama, apoiada pela atuação de Demick Lopes ao longo das cenas.
Sem querer dizer muito sobre o filme todo, ainda é preciso ressaltar o monólogo de Ana Luiza Rios, que apesar de ter força joga à nós, mulheres, ao que sempre parecemos dizer. O discurso da mãe não tem o choque esperado. Todo o abalo passa quase batido, o falar exausto de mães exaustas explicando em looping o óbvio. A melancolia do pai nem se aparenta, não machuca em nada, e nem amolece a imagem ausente. A escolha dos caminhos é posta em cheque e tudo o que resta é solidão. O descuido com o outro, a busca da felicidade individual, o arrependimento inadiável. “O que passa não é o tempo, é a gente” (frase dita por Jupyra Carvalho). A morte do pai gritado sem raiva nenhuma. O nome do pai revelado pela boca de amantes. Talvez isso tudo tenha sido uma escolha e reflete a vida real.
Veja o trailer do filme aqui: