Relatos em primeira pessoa sempre possuem uma potência, uma capacidade surreal de transportar-nos para a mente do narrador e para o espaço que ele vê e descreve. E é isso que acontece em “O Pianista”. Wladyslaw Szpilman nos conduz diretamente para a Segunda Guerra Mundial, para sentir as dores e sofrimentos daqueles que apenas por serem judeus foram julgados e condenados, sem nenhum tipo de defesa.
Em seu manuscrito, Szpilman relata tudo o que viveu durante a II Guerra Mundial, de 1939 a 1945, tendo a obra sido publicada pela primeira vez na Polônia em 1946. A tensão na pré-invasão da Polônia pelos alemães, sua vivência nos guetos, os trabalhos forçados, a perda da família, a fome, o frio, a solidão, o suplício de ainda estar vivo após tantas mortes, tudo é retratado de forma crua.
A narrativa foi escrita pouco tempo depois do músico ser salvo, com tudo ainda muito fresco em sua memória. O relato, assim, é ao mesmo tempo simples e incrivelmente forte. Como ele sobreviveu? Como alguém conseguiria sobreviver a tudo pelo que ele passou? É a pergunta que fica após o final da leitura. Ninguém poderia resistir à tanto ódio e violência.
A sensação é de que ele foi escolhido pois seria capaz de transmitir toda a história com o poder das palavras. Afinal, mesmo depois de quase 80 anos após essa guerra sádica, o texto ainda comove, é reflexivo e nos faz parar e pensar porque cargas d’água ainda existe algo parecido com guerra. Parece que Ares e Odin continuam se deleitando com a desgraça contínua proporcionada por nós.
Além disso, é interessante observar como o conceito de “banalidade do mal”, cunhado por Hannah Arendt, está presente em todo o texto. Vários trechos reforçam a ideia de que os soldados estavam apenas seguindo ordens, os cidadãos não-judeus, apenas tentando viver suas vidas enquanto observavam o holocausto.
“Ao nosso lado vinha um garoto de uns 10 anos. Estava tão apavorado que se esqueceu de tirar o boné diante de um gerdame que se aproximava. O alemão parou o garoto, sacou o revólver, encostou-o na fronte do menino e, sem dizer uma palavra, disparou. O pequeno corpo caiu na calçada, agitou-se convulsivamente e ficou rígido. O gerdame devolveu o revólver ao seu coldre e, calmamente, seguiu seu caminho. Olhei para ele com atenção: o rosto não tinha aparência brutal, nem ele parecia estar zangado ou aborrecido. Tratava-se de um cidadão calmo e normal, que executara uma das suas tarefas diárias e já tinha esquecido, estando a sua mente ocupada com questões mais importantes.” p.158
Mas a nova edição da Record oferece outras vozes. Tomaz Barcinski, tradutor da obra no Brasil, deixa alguns comentários sobre o seu trabalho. O Prefácio inédito é de Andrzej Szpilman, filho de Wladyslaw. Temos também trechos do diário de Wilm Hosenfeld, o alemão que ajudou nosso pianista. Tudo se complementa para que possamos compreender aquele momento específico, que até hoje é relembrado como um dos mais tristes da história.
Se você já viu o filme, dirigido por Roman Polanski, saiba que a experiência é completamente diferente. Adentramos na essência de Wladyslaw. É uma leitura confortável? Não. Mas é necessária. Livros devem trazer muito mais que prazer, mas inquietações, tristeza e despertar a consciência. Se mais pessoas lessem, talvez o mundo fosse um lugar melhor.
Veja também: O homem que salvou o personagem de Waldislaw Szpilman, do filme “O Pianista”
Ficha técnica:
O PIANISTA
Autor: Wladyslaw Szpilman
Tradução: Tomasz Barcinski
272 págs. | R$ 64,90
Ed. Record | Grupo Editorial Record
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