Ao ler o trecho a seguir, muito provavelmente uma voz grave e aguda virá à cabeça: “Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Ninguém mais, ninguém menos que Elis Regina eternizando a letra escrita por Belchior e que carrega uma constatação repleta de dor e acidez, pois mesmo percebendo e não concordando, a repetição de padrão segue presente, restando o amargor da canção.
Essa repetição é exatamente a tônica de As Sementes do oratório, romance de estreia do psicanalista Ricardo Trinca e publicado pela editora 7Letras, em 2023. Nele, o autor desenvolve uma narrativa transgeracional na qual os traumas de seus personagens são reavivados e revividos através das gerações de uma mesma família.
De forma fragmentada e repleta de rupturas, a história nos apresenta aos antepassados e descendentes de Deodoro, o patriarca, e aos de sua esposa Elena. Duas famílias que convergiram para tornarem-se uma só, trazendo e levando valores e dores, deixando marcas ao longo de um caminho repleto de mortes precoces: morte da infância, dos sonhos, dos frutos. Marcas que remontam a outro continente, outro século, outras vivências, mas que se fincam a terra e a pele.
Tais vestígios funcionam como uma arqueologia emocional na qual escavando as histórias dos personagens, mas em especial suas emoções. Nós, leitores, junto ao narrador, vamos investigando e compreendendo melhor como certos padrões de comportamento, de escolhas e até da forma de lidar com os próprios sentimentos, vão se repetindo, perpassando gerações.
“Não chorou, não sentiu, não sofreu. Não sentiu saudades. Mas assim mesmo a saudade permaneceu por lá, tenazmente atada ao seu espírito de pedra. E ela se misturou, não era apenas do cavalo, mas também da esposa, dos filhos, da casa, da vida que tinha, de tudo junto. Sua forma não era de saudade, mas de dor, e que fez dele um homem raivoso, silencioso, fechado para sensibilidades e para delicadezas. E essa saudade continuou por muito tempo e depois por gerações, como um grito horrível, sofrido, que ecoou pelo tempo à espera de alguém que conseguisse escutá-lo.”
É uma narrativa de faltas. A falta de cuidado com as dores e angústias, a falta de compreensão de um sofrimento brutal, intenso, não processado e que estica e esgarça aqueles que vêm depois. Deixando-os vazios, cheios de buracos e fendas.
“Elena se angustiava com essa ideia sombria de um gene repetidor, alienante, que destruíra o sendo de liberdade de Deodoro, para lhe oferecer, por meio da repetição pessoal e coletiva, uma segurança existencial. E essa segurança podia, através das gerações, se tornar uma repetição sem fim.”
Morre um pouco o modinheiro com sua viola quebrada, a criança cuja infância é encerrada precoce e bruscamente pela morte do pai, a mãe esvaziada e carente de destino, a menina impedida de estudar e a que foi obrigada a se casar, a jovem que se deu conta cedo demais da crueldade da própria família. Todos deixando “tocos” pela estrada, restos sem vida do que poderiam e queriam ter sido, mas não conseguiram. Ausências.
Ausências que renascem na normopatia de Deodoro e no embate, não apenas geracional, com os filhos. As palavras não ditas, os gestos não feitos, as feridas abertas. Tudo desemboca em um mal-estar generalizado na família que precisa lidar com esses fantasmas do passado, mas também com os assombros do presente, como a frágil saúde de Elena. Elena que também possui seu próprio caldo emocional, seu próprio “toco”, mas também Elena, que através da escuta e das memórias folheadas passa por uma tomada de consciência em busca de esperança, encontrando-a em algumas sementes de mudança a germinarem.
“Ela não conseguiu encontrar mais o que lhe era essencial, porque lhe foi cortado, como uma navalha na carne, como uma infância perdida, como uma viola quebrada. É uma história da qual sofro também, de um modo diferente, mas igual; e pouco consegui sair dela.”
Matar o pai, como diria Freud. Ouvir o sofrimento dos que vieram antes. Desamarrar os nós. Abrir a gaiola. Renascer. Recriar. Seria possível quebrar o ciclo? Seria utópico sonhar em construir uma história diferente?
Ricardo mergulha fundo nas entranhas dos personagens, seus sentimentos, dores e frustrações, fazendo das emoções o grande fio condutor da narrativa, cujos cortes e interrupções impedem que o texto entre em um marasmo.
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Além da quantidade de personagens (avós, pais, filhos) bem explorada, ou seja, sem nos deixar perdidos entre as gerações e os acontecimentos, a dinâmica do livro também está nesse movimento ágil do texto que navega entre o momento presente, sonhos, lembranças e memórias, enquanto esse grande novelo ancestral vai sendo desenrolado.
O fator sensorial também é muito presente nesse desenrolar. Dores emocionais que se tornam físicas, gatilhos visuais despertados por retratos expostos, cheiros e perfumes que compõe uma narrativa muito focada no sentir. Em uma determinada passagem, por exemplo, Deodoro sente os “ossos tremerem”, ao que pensa logo em seguida: “Devem ser as lembranças”. Já em outro trecho a importância de um perfume é destacada:
“O que permanecia obscuro para ele era a importância do perfume dela. Um perfume que não existia em Elena, que se misturava com as roupas lavadas, com os corredores e armários. Um perfume que demorava para desaparecer, pois algo nele resistia ao tempo. Era a presença de um perfume predileto, talvez fisicamente ausente, imaginariamente estabelecido nos interiores dos recintos como aquela familiaridade de um colo de mãe nunca realmente obtido, mas sempre desejado. O perfume parecia apontar para esse lugar e, com essa importância, talvez não pudesse mesmo desaparecer.”
Aqui em As Sementes do oratório há, na verdade, o levantamento de uma tese, a do trauma que permeia gerações, e Ricardo usa a ficção com recurso para abordá-la, mas sem deixar o academicismo aparecer em seu texto ficcional. As referências estão presentes, mas por trás do texto, diluídas em uma narrativa melancólica, bonita e brutal, apesar da sensibilidade do autor. Uma narrativa que nos emociona e nos leva a refletir sobre nossa herança, nosso legado, o que trazemos e o que deixamos. Se “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.”.
Sobre o autor:
Nascido em São Paulo em 1975, Ricardo Trinca é psicanalista (IPA, SBPSP), Doutor em psicologia clínica (USP), Mestre em filosofia (PUC-SP) e autor de diversos livros e artigos. “As Sementes do Oratório” é seu romance de estreia.
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