Na cena inicial do filme “Ficção Americana”, o professor Monk está apresentando para turma um conto de uma autora clássica dos Estados Unidos. Uma jovem branca de cabelo verde da primeira fila disse não ter lido o texto, mas se sentir desconfortável em usar a palavra “nigger” que está no título do conto de Flannery O’Connor.
Nigger é uma palavra utilizada como insulto racial na língua inglesa e tem origem lá no século XVIII. Hoje em dia, quando querem se referir à palavra, se usa a expressão “the N-word”. Em resposta ao incômodo da jovem branca, o professor, um homem negro responde: “se eu consegui superar isso, você pode”.
Mas de que conto o professor estava se referindo? Como se pode ver na imagem trata-se do conto “The artificial nigger”, da escritora do sul dos Estados Unidos, Flannery O’Connor. Flannery O’Connor é considerada uma das maiores contistas de todos os tempos, tendo seu livro mais conhecido no Brasil a coletânea “Um homem bom é difícil de encontrar”. A autora é também uma figura controversa: uma mulher católica, conservadora, de direita, mas com uma escrita densa e intensa que, à sua forma, retratava com precisão e minúcia as questões raciais dos estados do sul norte-americano.
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No conto “The artificial nigger” (o negro artificial), temos um avô e um neto que conversam durante uma ida para a cidade. A criança que nunca viu um negro na vida, não consegue ver a diferença entre negros e brancos, mas o seu avô faz questão de destacar para o neto aquilo que ela não vê.
Um trecho:
[…] ‘O que era aquilo?’, perguntou ele.
‘Um homem’, disse o Nelson, que a essa altura sentiu que era melhor ser prudente.
‘Você não sabe de que tipo?’, Mr. Head disse em tom defenitivo.
‘Um velho’, disse o menino, com súbito pressentimento de que não ia se divertir tanto assim naquele dia.
‘Pois era um negro’, disse Mr. Head, se recostando.”
O mais curioso é que Flannery é impiedosa em mostrar o nosso grotesco: o mesmo avô que lembra, e ensina o menino o que é um negro e, por isso, ensina-o também o racismo, é aquele que vai abandonar o menino por estar “em um período de dificuldades”.
“Ficção Americana” expõe de forma debochada as hipocrisias e os vícios de uma branquitude dominante na tentativa de “incluir” racialmente os negros, mas que fetichiza-os em suas histórias e caracaterísticas. Justamente o contrário que Flannery faz em seus contos.
No caminho oposto, Flannery não só reconhecia seus preconceitos, como sua religiosidade sofria por eles e vivia tentando redimir os sofrimentos que fazia. E, ainda assim, não ignorar que era toda cheia de erros. Enquanto isso, o filme mostra que a inteligência da branquitude não para de querer “pagar a conta” de seus preconceitos. Só que, claro, sem mudar a estrutura jamais.