Uma das principais potências do teatro é nunca estar à mercê do realismo. Inventando espaços imaginários e diálogos metalinguísticos, a cena teatral é perfeita para montar alegorias de tempos e construir histórias concomitantemente tão distantes e próximas. Isso já estava em Shakespeare, que levava suas obras para Veneza, para a Dinamarca, para ilhas distantes, mas no fundo buscava pensar o Reino Unido do seu tempo. Aqui no Brasil temos um nome que fez isso como ninguém: Oduvaldo Vianna Filho, mais conhecido como Vianinha.
As peças de Vianinha registram, em suas diversas narrativas e tempos, a história da transição entre a modernidade e a pós-modernidade brasileira. Em sua obra Rasga Coração (1974), por exemplo, temos o choque entre tempos de um avô integralista, um pai marxista e um filho hippie. Em Corpo a Corpo (1971), temos um personagem em pleno surto por não suportar mais se vender para a vida de publicitário de classe média tendo nascido para o cinema.
Porém, é em outra de suas obras que Vianinha vai mergulhar nas entranhas do poder em nosso país: Papa Highirte (1968) é uma das melhores alegorias sobre os governos autoritários e as ditaduras militares latino-americanas do século XX. A peça de um ato, com 11 personagens, conta a história de Highirte, um ditador banido da fictícia república latino-americana de Alhambra, deposto após governá-la por pouco menos de uma década. Exilado por três anos, Papa Highirte, como é chamado por todos, tem seu plano de retorno ao poder interrompido ao receber um novo motorista, Pablo Mariz, que na verdade é um revolucionário com pretensão de vingar a morte de seu amigo, Manito, torturado e assassinado pelo governo de Highirte.
É impossível deixar de lado o ano em que a obra foi escrita para pensar suas questões. 1968 foi, ao mesmo tempo, um dos anos mais importantes para os movimentos de resistência, como o Maio de 68 na França, os beatnicks e os hippies nos Estados Unidos, a Primavera de Praga, na República Tcheca e, no Brasil, a Tropicália, o Cinema Novo e o movimento antropofágico do Teatro Oficina de José Celso. Entretanto, do outro lado da moeda, tivemos também o ano de maior recrudescimento das violências cometidas pelas ditaduras, com intensificação de torturas e desaparecimentos de ativistas. No Brasil, leis abrem as portas para o que viria a ser o AI-5, ato mais brutal do autoritarismo no Brasil.
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De certa forma, Vianinha não só pensou todas essas questões, como colocou todas em jogo neste texto. Na disputa de poder, Papa Highirte não só ignorava o que acontecia ao seu redor, ao ter um general sanguinário operando violências no porão, como também exercia seu poder de maneira autocrática e hedonista, realizando pequenos prazeres e desejos. Não só por isso, mas também por isso, se viu desprotegido ao sofrer um outro golpe de estado. Highirte, fica claro, não só é torpe porque vive em busca do poder, mas principalmente porque é incapaz de perceber o nível de violência que seus atos e seus não atos imprimem no povo.
De outro lado, os revolucionários de esquerda, como Pablo Mariz, proibidos de se reunirem em partidos, são obrigados a viver calados ou se reunirem escondidos para arquitetar uma resistência possível — o que, em muitos casos, significa uma resistência cada vez mais violenta. A luta armada, então, não é causa de nada, pelo contrário, ela é a consequência de tanta violência. As torturas, os assassinatos, as censuras, as ocultações de cadáveres, são momentos sombrios tão de nossa história que fica difícil de acreditar que aconteceram.
Por isso é importante a figura de Pablo Mariz, já que sua ação na peça mostra não só a vontade pessoal de se vingar, mas a necessidade de se livrar dos traumas sofridos, reconfigurar sua história e a de sua luta. Em determinado momento, ele diz exatamente o que pensa a respeito das forças de resistência:
Eles falam que lutam pela liberdade, que queremos fazer todos virar autômatos, mas o que é que nós somos? Autômatos. Somos todos iguais, companheiros, a mesma miséria, olhem, o mesmo desinteresse, a mesma falta de futuro, o mesmo relógio de ponto, a mesma viagem de ônibus, a mesma dor nas costas, o mesmo único interesse de salvar pelo menos nossos filhos.
Papa Highirte, vivendo dos pequenos privilégios que lhe sobram, faz questão de ostentar uma influência que derrete cada vez mais. Ele tem um fim que desejamos, mas não necessariamente um final que satisfaz, pois como diz Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”. E existem tantos Highirtes por aí, são tão fáceis de forjar em programas de entrevistas de qualidade duvidosa, nos púlpitos das igrejas, nas palestras motivacionais. Papa Highirte é um Odorico Paraguaçu mais sofisticado, mais urbano, mas nem por isso representa menos o retrato do poder das oligarquias que comandam os países da América Latina.