Escrita pelo togolês Kossi Efoui no início da década de 1990, A encruzilhada verte em poesia vidas ressecadas pelo autoritarismo, vidas daqueles que, nas palavras de um dos personagens, precisaram aprender a se confundir com o cenário para poderem se manter vivos.
Uma Mulher e um Poeta estão à procura de um caminho, de um futuro, onde seja possível ser alguém, não apenas sobreviver. Acontece que, na encruzilhada em que eles se encontram, não se vê nenhuma saída. Se é verdade que o Poeta vislumbrou no exílio uma nova existência, tal afastamento não lhe trouxe mais do que a possibilidade de, outra vez, se confundir com o cenário, o que já não era mais possível em seu país natal, onde era perseguido pelas autoridades.
Esses personagens – por vezes semelhantes a bonecos inanimados – ganham vida pelo sopro de um Ponto, que lhes traz a fala como quem carrega e transmite uma memória há muito silenciada. Nesse microcosmo, une-se a eles um Cana, personagem vazio de memória, que não procura caminhos pois tem “o medo no lugar da alma”.
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A encruzilhada que pesa sobre esses personagens é também aquela à qual o autor esteve condenado enquanto vivia sob o regime togolês, que, com nova roupagem, perdura até os dias atuais. Porém, ao ser ambientada em um espaço onírico, habitado por personagens arquetípicos – Mulher, Poeta, Ponto e Cana –, a peça transcende em muito seu contexto de origem, e seu sentido se universaliza.
Eu acho que A encruzilhada foi um ato de exorcismo da violência que eu sofria enquanto crescia, entrava na adolescência. Fui submetido a algo que eu considerava violento e medíocre, realmente violento e medíocre. Não entendia o que estava fazendo. E acredito que foi um ato, um ato da vida, de vitalidade e, portanto, de exorcismo, ou seja, que eu estava proibindo esse sistema de me desvitalizar. E essa peça foi isso, ela ataca um tipo de opressão que convoca o corpo, a respiração, a liberdade de pensar.
— O autor Kossi Efoui sobre a escrita de A encruzilhada
Por que ler A encruzilhada?
A encruzilhada empurra o leitor refletir sobre a essencialidade da arte, sobretudo quando ela procura ressignificar e traduzir uma questão sensível; neste caso, as consequências do autoritarismo e da violência de Estado. Kossi Efoui traz uma pluralidade de linguagens artísticas ao dar vida a seus personagens arquetípicos: ainda que se utilize de elementos tradicionais do teatro, o dramaturgo mescla à cena movimentos de dança e recursos sonoros, enriquecendo o drama. É através dessa construção cênica que A encruzilhada expurga não apenas os sentimentos do dramaturgo, mas também de todo o povo togolês que, por anos, foi, e continua a ser, flagelado pela opressão.
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Além da conquistadora poeticidade de A encruzilhada, nota-se que o autor não especifica o contexto histórico a que se refere, entregando ao leitor apenas o que há de essencial: o autoritarismo e os sentimentos despertados por ele. Com essa intencional omissão, Kossi Efoui abre margem para que a reflexão política não paire apenas sobre o Togo, mas se multiplique para todas as culturas mutiladas pelo colonialismo. Ainda que denuncie atos truculentos, o dramaturgo narra a história daqueles que resistem à desintegração.
A edição brasileira da Temporal vem acompanhada de prefácio, em que os tradutores ressaltam a dimensão autobiográfica da peça de Kossi Efoui e indicam seus principais procedimentos criativos, além de tecerem considerações sobre os processos de tradução e montagem. No volume, há ainda sugestões de leitura que permitem um aprofundamento na obra do autor, bem como um olhar mais amplo sobre o teatro africano de língua francesa, diaspórico ou não.
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