“Meu interior é meu exterior. Não se fie muito na fumaça do inverno,
abril logo sairá de nosso sonho. Meu exterior é meu interior”
A poesia sempre fala por si. Muitas vezes, ela fala até antes e depois de nós mesmos. Ela fala, inclusive, apesar de nós mesmos. Mahmud Darwich, ao escrever numa das últimas páginas de Onze Astros a frase que abre esse texto, traça o principal procedimento de toda sua poesia e escrita. E isso apresenta, talvez, um retrato amplo e complexo de todo povo palestino e de sua luta por uma terra, mas também por toda uma experiência universal do exílio.
Mahmud Darwich é conhecido no mundo árabe como “o poeta da palestina”. Um escritor que prima por uma poesia ao mesmo tempo simples e densa, de imagens que explodem de uma intimidade para dar a ver o retrato de uma coletividade. Preso e exilado, anotou de longe e tratou de dar não apenas voz, mas sons e imagens, para a luta do povo palestino. Em Onze Astros, publicado pela Editora Tabla, com tradução de Michel Sleiman, temos seis longos poemas do autor em que ele aponta para a poesia mais do que como uma fotografia de uma região ou de uma luta, mas também como a tentativa de captura de uma universalidade das regiões e das lutas, como se um devir das minorias estivesse onde quer que haja guerras, lutas, invasões, exilados.
“Quem sou eu depois da noite do desterro?” Esta pergunta permeia grande parte dos poemas e dão a ver uma série de reflexões a respeito de uma distância da terra. Ele vai, então, listando estas perguntas que ele pretende pensar: “Como era nossa história em torno da história de vocês no país distante?” “Como escrever na nuvem o testamento do meu povo?”. O que se é quando se torna um errante? Como ter, manter, construir, refazer uma identidade quando ela é partida e esfacelada. Diz ele:
Desde que aceitei o “pacto da errância” não tenho mais um presente
para amanhã ter por perto meu ontem.
A experiência comum a muitos que vivem essas experiências de guerra é que, de um lado, os momentos históricos são visto em sua sucessão, como se fossem impossíveis de serem capturados e, de outro, como os momentos de uma vida comesinha quase sem sentido, sem rumo, a espera de um mundo que não chega, um mundo sempre crepuscular, ou como diz Darwich, de “outono”:
O outono passou por mim e não me dei conta.
Passou inteiro o outono, nossa história passou sobre a esplanada…
e não me dei conta.
No segundo poema, “Discurso penúltimo do ‘índio vermelho’ diante do homem branco”, Darwich recupera a chegada de Cristóvão Colombo a América a partir das violências cometidas contra o povo indígena. É interessante perceber o procedimento em que o poeta se coloca diante de uma minoridade indígena espelhada com a sua experiência sofridas como palestino. Assim, uma espécie de irmandade com os indígenas se constrói tendo como base um elemento que relaciona esses povos com sua conexão com a natureza. Como se o cuidado com a terra, ou melhor, uma relação telúrica com o espaço, fosse a marca destes povos, sendo aa integração com a natureza não uma saída para os problemas, mas uma espécie de anterioridade inescapável não para um retorno a um tempo natural, mas para uma nova relação com a própria ideia de terra. “Não machuque a tartaruga em cujas costas dorme a terra, / nossa avó terra: as árvores são seu cabelo, suas flores são nosso enfeite”, afinal de contas,
Nossa história era a história da natureza.
Os poemas, de certa maneira, fazem uma revisão do mundo ocidental do ponto de vista de um exilado em que ocidente não é apenas ocidente e oriente não é apenas oriente, mas marcas da história, cicatrizes de tempos disputados, de pessoas violadas, de povos silenciados diante de poderes, religiões, guerras. Cidades construídas por cima das histórias e das memórias de mortos, como diz ele no poema mais bonito de todos:
Mortos dormem nos quartos que vocês vão construir.
Mortos visitam seu passado nos lugares que vocês vão destruir.
Mortos passam em cima das pontes que vocês vão construir.
Mortos iluminam a noite das borboletas, mortos
chegam de surpresa para tomar um chá com vocês, vêm calmos
como os deixaram seus fuzis. E vocês, hóspedes do lugar,
deixem um lugar para seus anfitriões…vem ditar
a vocês os termos da paz…como os mortos!
Darwich não é uma poeta da urgência, mas dos pequenos mundos urgentes. Do tempo que se deve ganhar para tomar um café. Da vida cotidiana que deve resistir aos marcos históricas. Das vidas que mais do que resistem, existem e por existirem, depois de tudo e apesar de tudo, (r)existem.