O livro A droga da obediência foi publicado, pela primeira vez, em 1984. De autoria de Pedro Bandeira, a história sobre um grupo de quatro adolescentes, os Karas, cujas habilidades especiais estão à altura dos melhores detetives de São Paulo, deu origem a mais cinco livros: Pântano de sangue, Anjo da morte, A droga do amor, Droga de americana! e A droga da amizade.
Um dos maiores best-sellers da literatura infanto-juvenil, A droga da obediência já está na sua 5ª edição e continua marcando presença inabalável nas escolas, como leitura obrigatória. A história dos adolescentes Miguel, Calu, Crânio, Magrí e Chumbinho ultrapassa gerações com as questões que enfrentam – que vão desde os ciúmes e os problemas de convivência à luta contra o autoritarismo, em suas várias expressões. Nos cinco livros da série, são tratados temas como tráfico de drogas (Pântano de sangue), eugenia (Anjo da morte), ultranacionalismo (Droga de americana!) e terrorismo (A droga da amizade).
Em A droga da obediência, o tema central mais explícito é a indústria farmacêutica. Em São Paulo, palco das aventuras dos Karas, vários estudantes de colégios renomados (e de classe média alta) começam a desaparecer. No Colégio Elite, escola fictícia criada por Bandeira onde estudam os protagonistas, acaba de surgir o primeiro caso. Com a promessa de outros desaparecimentos, o grupo de adolescentes superdotados dos Karas se reúne para desvendar o mistério e evitar mais consequências. Ao longo da história, descobrimos que tudo se tratava de um plano de uma mente genial (ou só “geniosa”?), o Doutor Q.I., em transformar esses adolescentes em pessoas ultraobedientes.
Até aqui, fica evidente a crítica à influência dos medicamentos na vida das pessoas, assim como à instituição por trás de suas fórmulas e distribuição. Em uma nota do livro, Pedro Bandeira afirma que se inspirou na própria história para abordar esse aspecto do livro:

Há anos eu sofro de uma brutal dor de cabeça, chamada cefaleia de Horton, sendo este o nome do bravo cientista que descobriu que tal dor existia sem, contudo, descobrir como curá-la. Certa madrugada, acordado por uma crise violenta, fui para a minha mesa de trabalho esperar que passassem os 50 minutos regulamentares da dor. Lá, enquanto corriam as lágrimas também regulamentares pelo lado direito do rosto, enquanto a face direita inchava e avermelhava-se, fiquei pensando na injeção que fazia cessar imediatamente a crise. Mas eu não possuía essa injeção, pois o laboratório, por razões comerciais, tinha deixado de fabricá-la.
Pedro Bandeira sobre ‘A droga da obediência’
A medicalização da infância na forma de drogas como a Ritalina (no Brasil, o consumo dela é o segundo maior no mundo) foi de muitas formas antecipado por Pedro Bandeira no livro de 1984. Nas últimas décadas o número de diagnósticos de “distúrbios de aprendizagem” cresceu exponencialmente, assim como a consequente medicalização de crianças e adolescentes. Considerando as devidas ressalvas, os possíveis benefícios dessas medicações, é impossível não lembrar de Bronca que, sendo um dos alunos mais “dispersos” e “bagunceiros” do Colégio Elite, foi escolhido como cobaia da “droga da obediência” no livro de Bandeira.
Na escola dos tempos contemporâneos, o desajuste à norma pode ser controlado – afinal, alunos (crianças! adolescentes!) inquietos só prejudicam a harmonia da sala de aula e do ambiente escolar como um todo. São hiperativos, disléxicos, autistas; dentre outros sujeitos que prejudicam a manutenção de uma homogeneidade comportamental nas escolas. Na esteira do conceito de biopoder de Michel Foucault, ideia que estabelece a existência de um poder que regula sutilmente as formas de estar vivo – controla-se os corpos para controlar desde nossas formas de trabalhar às nossas formas de brincar. Como uma das instituições mais tradicionalmente ligadas à reprodução desse poder, por meio do vigiar e do punir, temos a escola. No caso do livro, temos um medicamento para desempenhar esse papel de forma escancarada.

Há ainda outra crítica (talvez menos explícita) ao poder disciplinar da escola. O fato de o Doutor Q.I. ser, na verdade, o diretor Colégio Elite, também questiona o abismo que existe entre a ideologia fundadora de uma escola e a verdadeira motivação de seu criador. Com a droga da obediência, o Doutor Q.I. poderia subjugar uma camada da população. Com a sua escola, poderia capacitar aqueles responsáveis pelo jugo.
Não se trata então somente de domesticar aqueles menos capacitados, mas também de transformar aqueles mais “dotados” em verdadeiros tiranos. O Colégio Elite, aquele cuja metodologia inovadora poderia transformar um mundo no lugar melhor, ainda é uma instituição. E assim ainda reproduz e reforça o poder. Assim, ainda disciplina.
— Ora, Miguel, lá está você novamente olhando as coisas por um lado só. Não, meu caro, as coisas são relativas. A verdade tem várias facetas. Procure olhar do nosso lado e verá a maravilha de um mundo de paz, sem conflitos, sem turbulências. Eu sei que você dirá que só existe uma verdade. Nesse caso, procure entender que essa verdade está nas minhas mãos!
— Não! A obediência somente leva à repetição de velhos erros. Só o respeito pela liberdade de cada um pode garantir a sobrevivência da humanidade. Só o respeito pelas opiniões divergentes pode garantir o progresso. Só a desobediência modifica o mundo!
— O que é isso, Miguel? Que discurso é esse? Será que você se esquece de quem você é? Como líder lá no seu colégio, você não é também um autoritário? Não é você quem não admite que suas decisões sejam contestadas?
Diálogo entre Doutor Q.I. e Miguel no final do livro
Mas, para além de toda essa análise e crítica possíveis, o que ainda atrai leitores, principalmente mais jovens, a esse livro são sua fábula e efabulação que parecem perfeitos ao que se propuseram. A linguagem precisa e envolvente de A droga da obediência empolga até o leitor mais desanimado. Li esse livro com alunos de um 7º ano do Ensino Fundamental, que simplesmente não se desgarraram da história até hoje. Nas rodas de leitura, Miguel e Chumbinho eram encarnados por eles que, com seus 11 ou 12 anos, se viam representados pelos personagens de Bandeira. Um deles, inclusive, é tão parecido com Chumbinho que me faz pensar numa possível capacidade premonitória do escritor santista.
O livro possui um narrador em terceira pessoa onisciente que desloca sua perspectiva a cada capítulo, de modo que se assemelha ao corte cinematográfico, uma vez que, ao selecionar o momento específico para narrar e as imagens necessárias para compor a “cena”, o narrador contribui para algumas quebras de expectativas.
O que seu estilo tem de contemporâneo e persuasivo, o seu enredo tem de permanente e provocador.
Enquanto A droga da obediência é um clássico escolar, intrometido em qualquer lista de leitura obrigatória no ensino básico – e responsável pelo letramento literário de tantos sujeitos –, os seus temas ressoam com todos os “indisciplinados”: aqueles que as escolas, menos ou mais progressistas do que o Colégio Elite, inevitavelmente diagnosticam, segregam e controlam.