Autor: Camilo José Cela
Tradução: Tomaz Ribas
Edição: 1990
Páginas: 76
“Não um modelo para imitar mas para ouvir; um modelo perante o qual apenas se pode dizer: – Vês o que faz? Pois faz o contrário do que devia.”
O quanto as condições do ambiente em que você vive interferem diretamente naquilo que você faz? Esta parece ser a principal pergunta que muitos escritores tentam desvendar. Um dos períodos mais profícuos na investigação desta relação foi o naturalismo cujo objetivo, pelo menos um deles, era, de alguma maneira, escavar nas condições sociais dos sujeitos o resultado direto de suas práticas. No século XX, estas perspectivas se atualizaram, retirando um pouco do caráter determinista, ganhando novos contornos mais contemporâneos, tendo como um dos seus mais célebres representantes o autor Camilo José Cela, prêmio Nobel de 1989.
A Família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela, conta a história de um pobre camponês da região de La Coruña que, a partir do horizonte curto de suas perspectivas de vida e, apesar da boa índole e da retidão de caráter, se vê tendo de lidar com seus rompantes de violência e atos intempestivos. A obra, lançada no mesmo ano de O Estrangeiro, de Camus, 1942, deixa-nos sensações de espantos similares ao livro do autor argelino, principalmente naquilo que poderíamos chamar de uma perda de bordas e limites nos gestos descontrolados de suas figuras. O livro é, na verdade, o relato de Pascual Duarte, em carta, poucos dias antes de sua morte, na tentativa de revelar (a si mesmo? A quem?) os possíveis motivos que teriam levado ele a cometer seus atos mais vis e criminosos, alguns deles que atualizam, inclusive, o destino das tragédias gregas como Édipo, Antígona ou Prometeu.
“Vou continuar a minha narrativa; é triste bem o sei, mas muito mais triste, porém, me parecem estas filosofias para as quais meu coração não é feito: o meu coração, esta máquina que fabrica sangue que qualquer punhalada faz derramar.”
O interessante desta perspectiva é a exploração, de um lado, de uma via quase existencialista, de uma vida que é sentida internamente como livre, mas que se vê entranhada dos ímpetos mais secretos da natureza humana e, de outro, através de uma total incapacidade de se escapar do destino. É que se Pacual parece ter total posse de sua vida, inclusive de seus atos, o que se vê, na prática, é que não sabe, não percebe e não consegue conceber muito bem como é levado até eles, qual seu gatilho que lhe foge ao contrário. A ideia de que uma mola propulsora lhe empurra até aos abismos do seu destino fazem o com que suas escolhas estejam limitadas quase que por uma cegueira, tal como o sol nos olhos de Mersault, de Camus. Assim, a ideia de morte que percorre sua trajetória, principalmente da perda de seus dois filhos, um ainda na barriga da mãe e o outro, Pascualzinho, antes de completar um ano, vai compondo uma estrutura que coloca Pascual face a face com caminhos cada vez mais estreitos, com perspectivas de futuros cada vez mais inescapáveis e, ainda assim, tal como Édipo diante de sua profecia, ir de sempre um passo mais próximo de seus maiores fantasmas.
“O sangue parece ser o adubo da tua vida…”
É particularmente curioso pensar neste desdobramento do naturalismo tradicional na Espanha, com a criação do que se cunhou chamar de “tremendismo” a partir justamente desta obra. Estamos diante, então, de um novo movimento que se fortalece, ainda mais o naturalismo do século XIX pro XX, com uma linguagem cada vez mais crua e uma descrição brutal dos fatos, trazendo a natureza humana e o destino para a ponta da discussão, sem deixar de levar em conta as questões socioculturais e políticas que envolvem os indivíduos. Assim, entre destino e escolha, o caminho parece ser muito mais complexo: a vida, no fim das contas, é uma trama que não conseguimos capturar e, por isso, quase sempre somos tragados e empurrados por ela. Temos escolhas, temos esperanças, mas não sabemos até onde elas podem nos levar.