Mario Benedetti é um escritor e poeta uruguaio. É autor de aproximadamente 80 livros: romances, contos, dramaturgia, roteiros para cinema. Algumas de suas obras mais conhecidas são “Gracias por el fuego” (1960) e “La tregua”. No entanto, sua produção que ganha mais destaque mundial é a poesia, tendo lançado 33 títulos. Benedetti nasceu em 1920, porém viveu exilado por doze anos em vários países a partir de 1973, tendo morrido em 2009, aos 88 anos de idade. É hoje um dos escritores latino-americanos mais conhecidos e lidos da poesia contemporânea.
O NotaTerapia separou os 10 melhores poemas do autor:
POR QUE CANTAMOS
Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel
você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
FAÇAMOS UM TRATO
Companheira
você sabe
que pode contar
comigo
não até dois
ou até dez
senão contar
comigo
se alguma vez
percebe
que a olho nos olhos
e um brilho de amor
reconheces nos meus
não alerte seus fuzis
nem pense que deliro
apesar do brilho
ou talvez porque existe
você pode contar
comigo
se outras vezes
me encontra
intratável sem motivo
não pense que fraquejara
igual pode contar
comigo
porém façamos um trato
eu quisera contar
com você
é tão lindo
saber que você existe
um se sente vivo
e quando digo isto
quero dizer contar
embora seja até dois
embora seja até cinco
não já para que acuda
pressurosa em meu auxílio
senão para saber
a ciência certa
que você sabe que pode
conta comigo.
A PONTE
Para cruzá-la ou não cruzá-la
eis a ponte
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país
trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar
venho com as faces da insônia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra
nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco
eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país
(De Preguntas al azar – 1984-1985)
SOU MEU HÓSPEDE
Sou meu hóspede noturno
em doses mínimas
e uso a noite
para despojar-me
da modéstia
e outras vaidades
procuro ser tratado
sem os prejuízos
das boas-vindas
e com as cortesias
do silêncio
não coleciono padeceres
nem os sarcasmos
que deixam marca
sou tão-só
meu hóspede
e trago uma pomba
que não é sinal de paz
mas sim pomba
como hóspede
estritamente meu
no quadro-negro da noite
traço uma linha
branca
(De La Vida ese Parentesis)
GENTE QUE EU GOSTO
Antes de mais nada gosto da gente que vibra,
que não é necessário empurrar,
que não se tem que dizer que faça as coisas
e que sabem o que tem que ser feito
e o fazem em menos tempo que o esperado.
Gosto da gente com capacidade de medir
as conseqüências de suas ações.
A gente que não deixa as soluções para a sorte decidir.
Gosto da gente exigente com seu pessoal e consigo mesma,
mas que não perde de vista que somos humanos
e que podemos nos equivocar.
Gosto da gente que pensa que o trabalho em equipe, entre amigos,
produz às vezes mais que os caóticos esforços individuais.
Gosto da gente que sabe da importância da alegria.
Gosto da gente sincera e franca,
capaz de opor-se com argumentos serenos e racionais às decisões de seus superiores.
Gosto da gente de critério,
a que não sente vergonha de reconhecer
que não conhece algo ou que se enganou.
Gosto da gente que ao aceitar seus erros,
se esforça genuinamente por não voltar a cometê-los.
Gosto da gente capaz de criticar-me construtivamente e sem rodeios:
a essas pessoas as chamo de meus amigos.
Gosto da gente fiel e persistente
e que não descansa quando se trata de alcançar objetivos e ideais.
Gosto da gente que trabalha para alcançar bons resultados.
Com gente como esta, me comprometo a tudo,
já que por ter esta gente ao meu lado me dou por satisfeito.
Mario Benedetti, poeta uruguaio.
Poema traduzido para o português por AjAraujo
AMOR DE TARDE
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer “e aí?” e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.
TE QUERO
uas mãos são minha carícia
Meus acordes cotidianos
Te quero porque tuas mãos
Trabalham pela justiça
Se te quero é porque tu és
Meu amor, meu cúmplice e tudo
E na rua lado a lado
Somos muito mais que dois
Teus olhos são meu conjuro
Contra a má jornada
Te quero por teu olhar
Que olha e semeia futuro
Tua boca que é tua e minha
Tua boca não se equivoca
Te quero porque tua boca
Sabe gritar rebeldia
Se te quero é porque tu és
Meu amor, meu cúmplice e tudo
E na rua lado a lado
Somos muito mais que dois
E por teu rosto sincero
E teu passo vagabundo
E teu pranto pelo mundo
Porque és povo te quero
E porque o amor não é auréola
Nem cândida moral
E porque somos casal
Que sabe que não está só
Te quero em meu paraíso
E dizer que em meu país
As pessoas vivem felizes
Embora não tenham permissão
Se te quero é porque tu és
Meu amor, meu cúmplice e tudo
E na rua lado a lado
Somos muito mais que dois.
PÁSSAROS
Há vários séculos
que pássaros ilustres sobrevoam
os prédios da vasta poesia
a andorinha o rouxinol a cotovia
a calandra o pintassilgo o beija-flor
o corvo o papa-figos
e evidentemente a ave fénix
têm sido convocados pelos poetas
para povoar seus bosques
ornamentar seus céus
e preencher metáforas
eu aqui ponho a mão no fogo
pelos discriminados os que nunca
ou poucas vezes comparecem
os pobres passarinhos do esquecimento
que também estão cheios de memória
por isso aqui proponho
ao canário ao pardal ao sabiá ao melro
à viúva ao estorninho ao cardeal
à rola à gralha ao tico-tico
ao martim-pescador ao bem-te-vi
para que alguma vez entrem no verso
ainda que apenas seja como nesta ocasião
pela modesta porta de serviço
EM PÉ
Continuo em pé
por pulsar
por costume
por não abrir a janela decisiva
e olhar de uma vez a insolente
morte
essa mansa
dona da espera
continuo em pé
por preguiça nas despedidas
no fechamento e demolição
da memória
não é um mérito
outros desafiam
a claridade
o caos
ou a tortura
continuar em pé
quer dizer coragem
ou não ter
onde cair
morto
TODOS CONSPIRAMOS
a Raúl Sendic
Tradução de Salomão Sousa
Estarás como sempre nalguma fronteira
arriscando-te em teu lindo sonho e desvencilhado
recordando os charcos e o conforto tudo junto
tão desconfiado mas nunca incrédulo
nunca mais que inocente nunca menos
essa estéril fronteira com aduanas
e bobeiras e medalhas e também esta outra
que separa pretérito e futuro
que bom que respires que conspires
dizem que madrugaste muito cedo
dizem que em plena festa cívica gritaste
mas talvez nossa verdade seja outra
por exemplo que dormimos até tarde
até golpe até crises até fome
até imundícia até sede até vergonha
por exemplo que estás só ou com pouco
que estás contigo mesmo e é bastante
porque contigo estão os poucos muitos
que sempre foram povo sem saber
que bom que respires que conspires
esta noite de calma apodrecida
sob esta lua de meiguice e asco
talvez no fundo todos conspiramos
sensivelmente dás o sinal de fervor
a bandeira decente com a haste de bambu
mas no fundo todos conspiramos
e não só os velhos que não têm
com que pintar os muros de protesto
conspiram o desempregado e o mendigo
e o devedor e os podres puxa-sacos
cujo incenso não rende como há cinco anos
a verdade é que todos conspiramos
mas não só o que tu imaginas
conspiram claro que sem saber
os hierarcas os cegos poderosos
os donos de suas terras e de suas unhas
conspiram que os piores facilitaram
em teu favor que é o favor do tempo
ainda que julguem que sua ira seja a única
ou que descobriram o filão ou a pólvora
conspiram os abonados os ministros
os generais bem encadernados
os venais os frouxos os inermes
os crápulas os filhinhos da mamãe
e as mamães que arranjam a morfina
num abusivo preço inflacionado
todos querendo-ou-não seguem conspirando
inclusive o vento que bate em tua nuca
e sopra no sentido da historia
para que isso se rompa e termine
de romper o que está esfrangalhado
todos conspiram para que no fim logres
e isto é o de bom que queria te dizer
deixar para trás a cândida fronteira
e te instale enfim em tuas visões
nunca mais que inocente nunca menos
em teu futuro-agora nesse sonho
desvencilhado e lindo como poucos.
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