Talvez o título mais correto dessa postagem fosse “Fragmentos de fragmentos de Hilda Hilst“, visto que a antologia Uma superfície ancorada no riso, da escritora jauense homenageada na FLIP em 2018, é um preciso apanhado, realizado por Luisa Destri, de fragmentos (sobretudo da obra em prosa de Hilst) sobre temáticas como a ousadia do pensar, a tarefa e o ofício do escritor, Deus, mulheres, dentre outras.
O título da antologia refere-se a um trecho de Com os meus olhos de cão, obra da sua original prosa publicada em 1986: “DEUS? Uma superfície de gelo ancorada no riso”. Ao longo da antologia organizada por Destri, publicada em 2012 pela editora Globo, deparamo-nos com os assuntos mais caros à autora sintetizados em fragmentos potentes e que desafiam a sintaxe. São eles: “Ouso pensar”, “Corja humana”, “A tarefa do escritor”, “A língua é matéria vibrátil”, “O ofício do escritor”, “Mulheres”, “Esse aberto do peito”, “Pai”, “Cara cavada”, “Morte” e “Ter sido”.
Seguem 13 fragmentos de fragmentos de Hilda Hilst, acompanhados do nome da obra original e da parte cunhada por Luisa Destri:
a vida foi, Hillé, como se eu tocasse sozinho um instrumento, qualquer um, baixo, flautim, pistão, oboé, como se eu tocasse sozinho apenas um momento da partitura, mas o concerto todo onde está? (A obscena senhora D, “Ouso pensar”)
Em abstinência de compreensão, no entanto compreendendo. (A obscena senhora D, “Ouso pensar”)
uns agachados frouxos da alma, pavorentos, um medo lesmoso. não. não sou ninguém não. sou apenas poeira. poeira que às vezes se levanta e remoinha e depois sobe e levita, procurando o Pai. sou apenas cadela-poeira, às vezes fareja o que não vê, ficou cega e velha e nem sabe do existir desses muitos porquês. cadela vinda de lá: de uma esteira de luz que se desfez na Terra. (Estar sendo. Ter sido, “Ouso pensar”)
se nos fechamos conosco à procura de novos nomes para as coisas, amigos não teremos (Tu não te moves de ti, “Ouso pensar”)
não sei até por que não construíram a gente com as pernas abertas e aí gente não tinha que ficar pensando se era a hora de abrir as pernas. (O caderno rosa de Lori Lamby, “Corja humana”)
que coisa nojenta, Tiu. Por quê Eulália? porque ninguém gosta de falar dessas coisa. pois olha, Eulália, se todo mundo lembrasse do que lhe sei pela cu, todo mundo seria mais generoso, mais solidário, mais… (Cartas de um sedutor, “Corja humana”)
Eu sou aquele que é, o Homem disse. Eu sou aquele que não é, eu digo. O nu. Sem nada. O todo partido, partindo a palavra. O que vê o mar, o céu mas não vê nada. O cego. O que se faz presente pela ausência. O acrobata sobre os fios do tempo. Segura-se aqui ali nas texturas da seda, esgarça o que segura, despenca. O corpo da linguagem. O meu corpo. (Kadosh, “A tarefa do escritor”)
Nada de surpresas esta noite. Não quero nada. Quero experimentar o voo. Até a beirada, um pouco mais adiante, até o extremo da praia. Em cima das árvores. Cutucando os ninhos. Apenas para afagar as cabecinhas. Dos passarinhos. Árvores lá muito longe. Na serra quaresmeiras. Gladíolos. Quem sabe se as hortênsias gerânios cardos. E animais acantofagos. Quem sabe se acantos acantoados miniantos. E se não vou à serra, vou ao mar, flutivago sonâmbulo, Teseu escondido e. Perdão, saiu o poema, o que ficou há séculos, mas já passou. Paciência cidadão, um dia do leitor, outro não. (Kadosh, “O ofício do escritor”)
Se o canto das gentes se juntasse à audácia fremente do meu canto, talvez o rei cruel nem mais reinasse (Rútilos, “Corja humana”)
E todos os dias, o rugido: você está com uma úlcera na córnea, e por isso eu te aconselho a escrever daqui por diante coisas de fácil digestão, coisas que você pode fazer com pouco esforço, acaba com a coisa de escrever coisa que ninguém entende, que só você é que entende, é por causa dessas coisas que você tem agora uma úlcera na córnea (Fluxo-floema, “A tarefa do escritor”)
Mas a memória não me deixa mais amar, compreendes? Tudo termina e fica muito para memorizar. (Fluxo-floema, “Esse aberto do peito”)
Senhora, retrucou, será bastante difícil convencê-los , mas portar-me-ei, desculpe a mesóclise… E saiu correndo em direção ao banheiro. Na volta explicou-me que havia sido professora e sempre tinha ligeiras náuseas quando usava a mesóclise, mas diante de um assunto tão repugnante (no seu entender) e acrescido de mesóclise, teve que vomitar mesmo. (Cartas de um sedutor, “A língua é matéria vibrátil”)
eu deveria ter grifado aquela frase “Deus é um nome incomunicável”, e deveria ter trocado Deus pela palavra homem, e então ficaria assim: homem é um nome incomunicável. (Fluxo-floema, “Cara cavada”).
Imagem: revista ELLE