Se eu fosse Iracema é um espetáculo teatral do grupo 1Comum Coletivo que busca refletir a questões dos indígenas em território nacional, as consequências de uma colonização violenta e genocida e a tentativa de silenciamento de diversos governos, inclusive o atual, na defesa dos nativos nacionais. Interpretado por Adassa Martins, o espetáculo que viajou e ainda viaja o Brasil contando histórias de índios e índias para a conscientização do tema em nossos tempos atuais, Se eu fosse Iracema é descrito como:
“Com referências que vão desde os mitos e rituais de várias etnias originárias do país a aspectos como a demarcação de terras e outros direitos fundamentais, muitas vezes negligenciados, o espetáculo propõe um olhar sobre o universo indígena brasileiro, transitando entre a tradição e a sua situação atual, e questiona: qual a real possibilidade de convivência entre as diferenças?”
Após assistir o espetáculo no Rio de Janeiro, o editor do NotaTerapia, Luiz Antonio Ribeiro, escreveu essas impressões. Confira:
Para falar de Se Eu Fosse Iracema, de certa forma, preciso começar através de um gesto antecipatório que, em alguma medida, pode apontar para algo que vamos reencontrar lá na frente. Isto, em Se Eu Fosse Iracema, diria eu, é, logo de cara, um movimento duplo de apontar para uma ancestralidade apagada, esquecida, violada em sua potência de resistir, e, ao mesmo tempo, anunciar algo que já se dá no próprio título do espetáculo: Se Eu Fosse Iracema.
Perguntei-me, enquanto saía de casa para ir assistir o espetáculo se, ao ler o título estava diante de uma pergunta. E quantas perguntas havia nessa breve frase. Depois reli como se fosse alguma afirmação, uma denúncia, talvez? Em seguida, li com certa nostalgia de um passado, algo que se perdeu. E aí, de repente, tudo me surgiu claro: mas ora, já somos todos Iracema. A colonização, desde o começo, nada mais é do que reprodução de Iracemas. Iracema é um projeto – um plano, não uma cartografia – uma violência, uma imposição de forma que se dá aos corpos de povos que não pediram, nem sequer perguntaram o que era que aparecia diante deles. Iracema, no fim das contas, é a construção de um país a partir de uma relação de amor (amor?) pacificada entre um português e uma índia. Uma violência que nunca pode ser diminuída. E ainda com o tal anagrama de América, como se fosse possível, ainda, repetir o tal mito de fundação e esquecer para o que ele serve. Se Eu Fosse Iracema, em mim, dizia apenas uma coisa: a América é sempre a gente e o índio é sempre o outro que a gente aprendeu a não matar, a ignorar, a fingir que não existe. Como se, em qualquer momento, eles fossem passíveis de serem mortos novamente porque, o que a gente fez com índio é matar. E só. Mas isto pode mudar. É que, no fundo, Iracema buscava construir artificialmente um amálgama, uma fusão, uma força centrípeta entre colônia e colonizado, na busca de forçar, de gerar e de manter uma ideia de que há algo de pacífico nessa relação. E o espetáculo mostra que não houve e não há.

Eis o momento em que Se Eu Fosse Iracema chega até mim como potência, como linha de fuga, como possibilidade de escapar a esse projeto de nação. Tudo no espetáculo se dá como metamorfose: uma dramaturgia de Fernando Marques sempre cambiante, quase frágil, que se constrói em pequenos cacos, em partículas de ditos, de fragmentos de discursos. Há, também, uma metamorfose constante da língua, de jeitos de falar, de modos de ser. Ao contrário da pacificação de Iracema, o que temos é o oposto, um gesto coral, uma multiplicação de vozes que se dão quase ao infinito. Tudo isso sem gerar confusão, afinal, a confusão é uma particularidade da ordem, enquanto a metamorfose é, por si, feita de diferenças e repetições, de dobras, de unos que se tornam outros. Neste sentido, o mesmo pode ser dito sobre o corpo de Adassa Martins: metamorfoses de gestos, de corpos, de figuras, de seres, de ritmos, de fluxos, do que ainda não é alguma coisa se transformando em algo que tampouco ainda não ganhou forma. Enquanto forma o espetáculo se traduz em gesto, em força e aí, uma citação de uma lei morta se torna uma estabilidade banal e uma figura Kátia desfila (qual, Kátia?) como um pathos que só consegue ser patético.

A importância de Se Eu Fosse Iracema não está no fato de tratar da questão indígena ou de trabalhar o tema de uma violência de Estado – ou de Estados – sobre corpos que habitam nossa terra. A importância está em tentar desdobrar-se nesse corpo, mergulhar em suas formas e, por um breve tempo, ser ele. É que um corpo só é capaz de entender outro quando encontra duas coisas: o toque e o afeto.
Se Eu Fosse Iracema é afeto e toque do começo ao fim. Enquanto teatro é tão outra coisa que não saberia dizer em categorias que aprendi estudando aqui e acolá. Todas as críticas que poderia ver ou fazer se desfazem no gesto de que, quando uma política está sendo feita de maneira viva diante da gente, a discussão da mera forma se torna uma banalidade, se torna de novo projeto, enquadramento, nação.
Para saber mais, veja uma roda de conversa sobre o espetáculo: