Autor: Pedro Lemebel
Editora: Seix Barral
Ano: 2010
Páginas: 119
Esta resenha é dedicada a Luisa Bertrami D’Angelo
Como se mira algo que nunca más se va a ver? Como se puede olvidar aquello que nunca se há tenido?
Uma palavra que tem tomado conta das discussões em relação a tudo que envolve artes, políticas e sociedade é “afeto”. Creio que isto vem de uma tradição pós-moderna, que até então havia ficado nas margens do pensamento oficial e institucional, mas que, aos poucos, foi margeando as discussões até chegar numa espécie de status quo do afeto enquanto instância política do desejo. Isto é uma crítica, sim, porém também não é: para quem vem de um pensamento nietzschiano, com filiação de Bataille como eu, o afeto é produto direto do desejo, através de uma forma de erotizar a vida. E isso, quando é feito de verdade, faz parte de um motor essencial de energia do mundo.
É nesta medida que começo a escrever sobre o livro Tengo Miedo Torero: através do afeto. Este livro chegou nas minhas mãos através de minha namorada que foi viajar ao Chile pela primeira vez. Deixei apenas um pedido para ela: me traga um livro de rua e ela me trouxe esta obra de Lemebel que comecei a ler, claro, através do afeto que sentia por ela e pelo desejo de, ao ler o presente que me trouxe, ter estado viajando com ela e conhecido os lugares que ela conheceu.
E eis que, logo num primeiro instante, vi que o livro também era totalmente mediado pela ideia de afeto, de amor, mesmo diante de um dos momentos políticos mais complicados de uma sociedade. Tengo Medo Torero, de Pedro Lemebel, conta a história de um casal que começa a construir uma história de amor durante um dos momentos de maior repressão do governo chileno de Augusto Pinochet, principalmente nos dias que antecedem um atentado que quase tira sua vida em 1986. Esta história de amor é composta por La Loca del Frente e Carlos, um casal LGBT+ que se conhece justamente por conta da participação de Carlos no grupo Frente Patriótico, organizador do atentado contra o ditador chileno. Entretanto, não me ficou claro se se tratava de um relacionamento entre homens cis homossexuais ou de um homem cis hétero e uma mulher trans. É que esta personagem, conhecida como La Loca del Frente, é quase toda representada no feminino, mas na contracapa do livro diz-se tratar de um relacionamento homossexual. *(Enfim, pode haver um anacronismo por conta da obra ter sido escrita em um momento em que a visibilidade trans não era uma questão e estes termos não eram, ainda, bem delimitados. Ou, ainda, talvez o mais provável: por ter lido a obra no original, em espanhol, algo pode ter passado por mim).
A questão, no entanto, é que La Loca del Frente é uma figura bastante mais velha que Carlos e, por conta disso, possui diversas marcas de seu passado, como o tempo em que se prostituía ao lado de sua cafetina Rana, a quem chama de mãe. Carlos, guerrilheiro, era o contrário: um rapaz que ocultava toda sua história e todo seu passado. Carlos sequer era seu nome e como amar alguém se nome? Ele, inclusive, guardava seus livros e tudo que achava subversivo na casa da Loca e utilizava o lugar para fazer reuniões com seu grupo. Apaixonada, a Loca aceitava tudo isso, com um pouco de raiva, mas também com um forte apego de paixão, o motor para que este amor pudesse surgir.
Porque las lágrimas de las locas no tenían identificación, ni color, ni sabor, ni regaban ningún jardin de ilusiones. Las lágrimas de una loca huacha como ella, nunca verían la luz, nunca serían mundos húmedos que recogieran pañuelos secantes de páginas literarias.
Ao mesmo tempo, o livro se utiliza da alternância de narrativa, cobrindo também a visão da esposa de Pinochet que, sem parar de falar um instante, acaba por revelar os bastidores deste lugar em que o ditador ocupava na sociedade: ao mesmo tempo que enfraquecido pela falta de apoio popular e vida mesquinha de um militar em meio a regalias burguesas e, principalmente, anticomunistas, também ainda poderoso por tudo que podia realizar em seu país.
Esta narrativa dupla vai se compondo até o dia do atentado, mas não o faz como um clímax, apenas como mais um fato relevante diante das subjetividades descritas e expostas diante de nossos olhos: o amor da Loca, o amor nascente de Carlos, a vida burguesa de Augusto e sua esposa.
Ao fim, uma linda cena do casal LGBT diante de uma praia em Valparaíso: rolam na areia e colocam pra fora uma fúria apaixonada de uma masculinidade (será?) ocultada pelo próprio poder masculino. Ao mesmo tempo, uma esposa amargurada, do topo de uma casa, vê as pessoas nas praias com um certo desprezo de quem não pode viver a vida como deveria. O amor consegue uma pequena vitória em uma pequena batalha. Não ganha a guerra, entretanto. Porém, nos fica claro, o poder é, sempre, uma ocultação do prazer.
Curiosidade – O título do livro é baseado nesta canção interpretada por Lola Flores:
1 comentário
[…] pro Chile e eu pedi de presente um livro comprado na rua, numa feirinha. Ela me trouxe o romance Tengo Miedo Torero sem saber quem era Lemebel e qual sua importância na literatura do Chile. Eu, que estudo e me […]
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