Valter Hugo Mãe destaca-se como um dos nomes significativos da literatura portuguesa contemporânea. Escritor, editor e artista plástico, formou-se em Direito e cursou pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea na Universidade do Porto. Em 2007, conquistou o Prêmio Literário José Saramago com o livro O remorso de Baltazar Serapião (2006). Possui diversas obras publicadas e algumas são muito conhecidas no Brasil como: O filho de mil homens (2011), A desumanização (2013), O paraíso são os outros (2014) e Homens imprudentemente poéticos (2016).
Sua escrita mesmo não seguindo os padrões habituais, é marcada pela fluidez e pelo lirismo. O escritor opta, na maior parte das vezes, por não utilizar letras maiúsculas, espaço entre os parágrafos nem diferenciação gráfica entre a narração e os diálogos das personagens.
O livro A máquina de fazer espanhóis (2010), apesar da carga melancólica, trata de forma sincera os sentimentos que podem surgir com a chegada da velhice e também com a proximidade da morte. A narrativa tem como protagonista Silva, um barbeiro de 84 anos, que e é levado para morar num asilo. As principais questões da obra referem-se aos próprios conflitos pessoais da personagem como superar a morte da esposa, analisar e refletir sobre o seu passado e sobre o seu país, adaptar-se ao novo lar e conviver com outras pessoas, distantes de seu círculo familiar, entre elas, moradores, enfermeiros e funcionários.
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com a morte, também o amor devia acabar, acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir, pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade, e não é compreensível que assim aconteça, com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano, esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder […]
[…] nunca nos preparáramos para a derrocada de todas as coisas, nunca nos preparamos para a realidade, passamos a ser cidadãos terrivelmente antipáticos, mesmo que façamos uma gestão inteligente desse desprezo que alimentamos crescendo, e só não nos tornamos perigosos porque envelhecer é tornarmo-nos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestáveis que já não servem para nos impor verticalidade nem nas mais pequenas batalhas.
o américo não é habilitado por escola nenhuma senão pela do coração, estudou pela amizade e compaixão os modos de acudir aos outros, faz no lar o que fazem os enfermeiros também, mas com um acréscimo de entrega que não se exigiria, naquele primeiro contacto fiquei imediatamente convencido de que não poderia ser impostor com ele. com ele não. era muito simples a razão da minha decisão, na entrega daquele homem, logo ali, havia uma sublimação evidente que partiria de uma dor estrutural, procurei-lhe a expressão diversas vezes, percebi os seus olhos e tive a certeza de que, num momento mais avançado, aquele homem sofreria por mim.
um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento, a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico […]
[…] o que me faz correr é sempre o mesmo, uma vontade de saber mais e o de deixar contado às pessoas, nos livros, sabe. deixar nos livros aquilo que se descobre, porque um livro, com o que contém, pode ser uma fortuna eterna […]
[…] eu aveludava os modos e me ia apaziguando com o destino, eu também o sabia, havia passado o primeiro ano e a dor era profunda mas talvez começasse a surgir a tal saudade de que ele me falara, aquela saudade benigna que já não quer magoar mas celebrar o passado, era verdade que não podia desprezar o passado, entre o turbilhão das dificuldades acabei por resumir a vida em saldo positivo […]
[…] deixar um livro cheio de poemas que fiquem para sempre a comunicar com quem lhes pegue, é como deixar uma voz amiga de toda a gente, pense no que é hoje ler o camões e como aquilo ainda nos diz respeito, pense como será deixar por sua mão algo que também chegue ao povo, para que o povo conheça e se enterneça consigo e com o nosso tempo […]
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