Após o sucesso da primeira temporada, foi uma longa espera, mas finalmente esta chegou ao fim. No último dia 27, a Netflix trouxe mais vida ao final de semana pré-Halloween trazendo a segunda temporada da tão adorada série, Stranger Things. Aliás, por que será esta série assim tão fascinante? Com apenas oito episódios, na primeira temporada, a criação dos irmãos Duffer conseguiu introduzir personagens marcantes e cativantes e estabelecer uma mais do que ampla base de fãs. Será que parte disso tudo se deve ao clima bastante aconchegante da série, repleta de referências aos anos 80, desde toda atmosfera, da abertura, até a trilha sonora e cenas que são propositalmente similares a filmes clássicos da década? Claro que parte do sucesso da série se deve a este fato, que é um recurso bastante único da série. Outro fator também pode ser relacionado ao elemento sobrenatural surgindo em uma cidade aparentemente pacata, o que cria uma forte reviravolta na vida dos personagens.
Além disso, narrativas com elementos sobrenaturais costumam ser bastante populares com os telespectadores, é só ver quantas séries assim já foram feitas: Supernatural já tem mais de dez temporadas, X files foi um marco na TV, enfim, desde Buffy, foi observado que o sobrenatural, quando bem trabalho, consegue prender a atenção do público. Porém, uma história que prende a atenção dos fãs não pode ser algo vazio, por mais que tenha uma atmosfera e um tema atrativos. O que realmente faz com que Stranger Things faça sucesso é a sua essência. O segundo significado do Stranger do título. Stranger Things significa, literalmente, “coisas mais estranhas”. A princípio, o sentido de “mais estranhas” é lido como o elemento sobrenatural presente na história, certo? No entanto, esta não precisa ser a única leitura do título. Podemos ver como as coisas mais estranhas são, na verdade, não os monstros sobrenaturais, mas aqueles invisíveis, que enfrentamos dentro de nós mesmos. E o mais estranho de tudo, na verdade, talvez seja trilhar o árduo caminho de encontrar a si mesmo. Pode parecer bem clichê dizer isso, mas analisando um pouco alguns dos personagens da série, vemos que faz sentido. E um dos fortes motivos da série ser tão popular é o fato de seus personagens terem um desenvolvimento o qual gera uma identificação do público com estes.
Aliás, se você ainda não assistiu às duas temporadas da série, CUIDADO, pois teremos alguns SPOILERS abaixo.
Para analisarmos o porquê disso tudo, primeiro retomaremos brevemente a história da série, focando em alguns dos personagens. Tudo começa quando um grupo de garotos na faixa dos dez a doze anos estão jogando RPG na casa de um deles, Mike Wheeler. Os garotos são: Mike, Lucas, Dustin e Will. Após o jogo, cada um dos três vai para suas respectivas casas, andando de bicicleta à noite, em uma vibe bem anos 80 mesmo. Porém, Will, o mais tímido e também menor dos meninos, desaparece. Ou todos na pequena cidade de Hawkins pensam que ele está somente desaparecido, quando na verdade ele foi levado por um monstro, o qual eles chamam de Demogorgon, para o Upsidedown – o mundo invertido – que é exatamente igual ao mundo em que eles vivem, mas ao contrário, sombrio, muito frio e repleto de monstros. Em busca de Will, os três garotos acabam encontrando Eleven, uma menina que quase não fala e tem poderes telecinéticos. Além destes personagens, também temos a irmã mais velha de Mike, Nancy, o irmão mais velho de Will, Jonathan, a mãe dos garotos, Joyce, o detetive Jim Hopper e Steve, o namorado de Nancy.
No total, temos dez personagens chave, todos os quais demonstram lutar contra seus demônios internos antes de qualquer coisa e, por mais simples que tais batalhas possam parecer a princípio, são obstáculos os quais a maioria de nós enfrenta em algum momento, o que faz com que não seja difícil se identificar com estes personagens. O fato de que a maioria destes, com exceção de Joyce e Hoppers, está em fase de crescimento, faz com que o elemento de Bildungsroman seja algo bastante presente na narrativa da série. Bildungsroman é um termo alemão da crítica literária para definir o que pode ser chamado em português de romance de crescimento. É quando uma obra literária tem como foco o desenvolvimento emocional e psicológico de um personagem que passa da infância para a fase adulta, ou seja, foca no crescimento, no amadurecimento do personagem. E isso é algo que pode ser notado em Stranger Things, principalmente levando em consideração os acontecimentos da segunda temporada, quando os personagens estão em um processo constante de auto descoberta.
Aliás, já que mencionamos romances de crescimento, é interessante observar como um dos personagens da série lembra um pouco o protagonista de The Catcher in the Rye, de Salinger. Jonathan, o irmão mais velho de Will, é um adolescente solitário, com gostos bem próprios, e que adora o irmão mais novo; Holden Caulfield, o prtagonista do livro de Salinger, também é um jovem um tanto solitário, da mesma idade de Jonathan, e tem uma adoração pela irmazinha mais nova, Phoebe. Talvez seja uma comparação simplista, mas ainda assim, são aspectos bem semelhantes.
Tomemos como exemplo agora um dos personagens a princípio menos populares da primeira temporada: Steve, o namorado (agora ex) de Nancy. Steve era um simples estereótipo de um bad boy, um bully, que gostava de ser cruel com os demais para se sentir superior. Porém, após passar por algumas complicações o personagem começa a se redimir e, depois de seu término com Nancy, ele se torna um dos personagens mais sem rumo da série. E é exatamente isso que faz com que ele se torne útil, ajudando os garotos, Dustin, Lucas e Max, e ainda dando conselhos a Dustin. Falando nele, Dustin, o divertido garoto de cabelo cacheado, que era apelidado de “sem dente” (toothless) pelos bullies da primeira temporada, agora começou a gostar de uma menina nova na cidade, Max, a qual também se tornou o novo interesse de Lucas. Para a tristeza de Dustin, Max acaba ficando mais próxima de Lucas. No final da temporada, vemos Dustin sozinho no Snow Ball (uma festinha de escola daquelas típicas americanas em que as crianças encontram pares para dançar), e Nancy, a irmã mais velha de Mike, o chama para dançar e o tranquiliza sobre a temporária solidão de crescer. Nancy, que recentemente terminou com Steve, devido à culpa que sentia pela morte de sua amiga Barb (na primeira temporada, Barb é deixada sozinha por Nancy quando esta sobe para o quarto de Steve; após ser deixada sozinha, Barb acaba sendo arrastada para o mundo invertido e morta), e relutantemente começou a aceitar seus sentimentos por Jonathan, o irmão mais velho de Will.
Aliás, falando em Will, o pequeno que foi raptado pelo Demogorgon na primeira temporada, agora carrega o Mundo Invertido dentro de si – o que pode ser uma grande metáfora para como carregamos sombras por dentro, sombras as quais nos destroem e causam um forte impacto naqueles que nos são próximos, podendo até destruí-los também. Além disso, devido aos acontecimentos da primeira temporada, após ter desaparecido e ter tido até mesmo um funeral, e depois disso ser resgatado, Will começa a ser chamado de Zombie boy pelos colegas de escola, como se ele tivesse voltado dos mortos. Tal perseguição também parece afetar o garoto, mas nada se compara a ser transportado para o Mundo invertido a todo momento e ser praticamente possuído por um grande novo monstro do lugar. Por fim, o garoto é resgatado mais uma vez e, no final do filme, é convidado por uma menina para dançar no Snow Ball.
A personagem mais forte e misteriosa da série, Eleven, também teve um crescimento nesta temporada: a menina com poderes telecinéticos que salvou os meninos do Demagorgon na primeira temporada foi acolhida pelo xerife Jim Hopper, pois as “autoridades” que a mantinham cativa em laboratórias continuam a sua procura. No entanto, Eleven não consegue aceitar a ideia de viver trancada dentro de casa e, após uma discussão com Hopper, a menina sai por aí sozinha, em busca de sua mãe, a qual ela não chegara a conhecer. Ao encontrar a mãe, Eleven descobre que esta vive em um estado de saúde debilitado, repetindo palavras aparentemente sem sentido. Porém, sua tia, que vive junto da mãe, a informa à Eleven seu verdadeiro nome: Jane.
Eleven então usa seus poderes para tentar se comunicar com a mãe de outra forma, o que a leva a ver uma outra criança nas memórias da mãe. Ela acredita que esta outra garota também tenha sido usada como experimentos e assim desenvolvido poderes como ela, e através de uma fotografia, Eleven encontra a garota. Assim conhecemos a nova personagem, Kali, cujo poder é fazer qualquer pessoa ver qualquer coisa que não esteja lá. Kali vive com um grupo de punks, os quais influenciam Eleven a passar por uma mudança de visual bem drástica. Todo este episódio é focado nela, e após este viagem de auto descoberta, Eleven retorna a Hawkins, então mais forte e treinada para ajudar seus amigos.
Enfim, nesta temporada podemos observar como a série chama atenção não só pela temática de terror/ficção científica/suspense ou pelo clima anos 80, mas ainda mais pelos personagens, os quais todos têm seus demônios internos com que lidar, todos são o que chamamos em inglês de outcasts, ou seja, de alguma forma, sentem-se excluídos do resto do mundo, um sentimento pelo qual muitos de nós passamos. No entanto, com o passar dos episódios, vemos que eles evoluem e passam por cima daquilo que os fazia se sentirem limitados e solitários. Stranger Things mostra como, mesmo quando o mundo externo está caindo aos pedaços, é superando a nós mesmos que começamos a erguer o que nos cerca. Ou seja, para vencer na guerra externa, primeiro é preciso ganhar as batalhas internas.