Na obra de Deleuze sobre cinema, Imagem-Tempo, ele afirma, a respeito de Eisenstein, que a arte deve funcionar como um soco no espectador. Soco, no entanto, não tem a ver com violência temática, narrativa, da ordem do conteúdo, mas sim na utilização do maquinário do cinema. É através da montagem, na colagem em sequência de imagens que pareçam díspares que a imagem-soco deve se dar. Pode se extrair daí, então, que soco não é um golpe, mas uma arte, um artifício (ofício da arte?), que está ligado, principalmente no século XX com a ideia de técnica. Se fôssemos atualizar a ideia de “aura” trabalhada por Walter Benjamin em A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, poder-se-ia dizer que, se a aura do objeto morre, ela pode ser reconstruída, através de seu eco – sua imagem – via soco. Aura via soco é: como eticamente não é possivelmente mais sacralizar o objeto artístico mantendo-o de poucos para poucos – uma vez que a arte da reprodução se dá justamente para a massa – é via soco, ou seja, via exposição máxima dos meandros tecnológicos do cinema que uma espécie de aura, pathos artístico pode ser reconstruída. Isso sem causar empatia, ficcionalização, mas causar a arte como causa e consequência apenas de si própria: cinema como cinema.
De outro lado, remeto a um poema de Michel Melamed em seu livro Regurgitofagia em que diz:
Essa é a história da borboleta que se apaixonou por um soco.
O amor platônico de uma borboleta por um soco…
E essa eterna sensação de estar
Comprando dinheiro
Fritando frigideira
Cavando pá
Fotografando foto
Trocando o que já se tem pelo que ainda se tem…
Jáinda
Não se fazem mais antigamentes como futuramente, (…)
Nesse livro, que visa trocar a questão antropofágica por um caminho de regurgitação do que se come, o autor expõe um caminho afetivo da relação entre borboleta e soco, ou seja, uma relação que se dá por fora da regra dos iguais, mas do embate/aproximação sexual entre as duas pontas. Borboleta e soco não se excluem, assim como, na análise do cinema, não podemos colocar em oposição aquilo que é técnico, normativo, dogmático, daquilo que é estético, simbólico e do campo da afecção.
Dito isto, entremos no universo do Dogma 95. O Dogma 95 é um movimento cinematográfico internacional lançado por um manifesto publicado em 1995 na Dinamarca, encabeçado pelos diretores Thomas Vinterberg e Lars von Trier. O manifesto apresenta duas vertentes bastante claras – uma técnica com uma série de restrições quanto ao uso de técnicas e tecnologias nos filmes — e outra ética — com regras quanto ao conteúdo dos filmes e seus diretores.
Do manifesto propriamente dito, destaco dois pontos:
1- “Para o Dogma 95 o cinema não é uma coisa individual! Hoje, uma tempestade tecnológica cria tumulto. O resultado será a democratização suprema do cinema. Pela primeira vez, qualquer um pode fazer filmes. Mas quanto mais os meios se tornam acessíveis, mais a vanguarda ganha importância. Não é o caso que o termo vanguarda assuma uma conotação militar. A resposta é a disciplina… devemos colocar os nossos filmes em uniformes, porque o cinema individualista será decadente por definição.”.
2- “Para o Dogma 95, o filme não é ilusão!
Hoje em dia, arma-se uma tempestade tecnológica. Elevam-se os “cosméticos” ao status de deuses. Utilizando a nova tecnologia, qualquer um pode – em qualquer momento – sufocar a última migalha de verdade no estreito canal das sensações. As ilusões são tudo aquilo atrás do qual pode esconder-se um filme. Dogma 95, para erguer-se contra o cinema de ilusões, apresenta uma série de regras estatutárias: o Voto de Castidade.”.
Ora, mas o que haveria no Dogma que se poderia pensar na lógica do cinema como soco, como expõe Deleuze? Parece-me que ambos trabalham na mesma chave, no entanto, sob aspectos diferentes que podem ser explicados pela distância temporal de seus trabalhos e escritos. Quando Von Trier e Vinterberg afirmam que o cinema não é algo individual, ou seja, não vem da mente de um gênio, como no conceito criado pela arte burguesa, o que ele diz é que o cinema não pode ser uma assinatura ou o trabalho de apenas um. No cinema, e isso é ontológico, o trabalho é coletivo, pois é determinado pela técnica que um opere o som, outro a luz, outro a cenografia. Porém, o que se pôde ver no cinema Hollywood foi todas essas instâncias se subordinando às grandes empresas, aos grandes cineastas e às grandes estrelas. Ou seja, o cinema ao invés de democratizar o aparato, passando pela mão de todos, oprimiu, criando uma máquina de ilusões.
Justamente por isso, o manifesto enfatiza o questionamento da relação de “cosmético” que o cinema da massa tem. O que se vê é exatamente isso: pegar o supérfluo – a tecnologia porque sim e porque se pode – e impô-la como norma, como regra, assim como espetacularizar a imagem dos atores, que se transformam em semideuses, criando uma neo-aura, agora vazia de significado, mas que gera um imenso lucro às distribuidoras. Nesse sentido, o Dogma 95 se aproxima absolutamente daquilo que fala Deleuze: o cinema não pode criar a ilusão, não pode adentrar na psicologia da personagem ou da lógica da narrativa sequencial como forma de criar verossimilhança na forma mais conservadora de arte; pelo contrário, deve expor suas falhas, seus defeitos, suas limitações e criar as zonas de penetração do espectador (de respiro para Deleuze), em que os elementos não digam sempre a mesma coisa ao mesmo tempo, para que a recepção se sinta e se torne parte integrante da obra e seja, por fim, ativo e agente da arte.
Apresento, no entanto, aquilo que parece, pelo menos na superfície, ser uma contradição entre o pensamento de Deleuze e do Manifesto Dogma 95. Deleuze fala da arte como forma de vencer os extratos, na lógica do corpo sem órgãos de Artaud, em referência ao texto Mil Platôs, ou seja, uma arte que ultrapasse o limite do intelectual e do sentimento e se incida diretamente no corpo, nas vontades, nas pulsões e no desejo, em uma transformação individual (que se faz coletivamente) em quea arte cole tão diretamente aos nossos desejos mais primários que a transformação se dê em todos os níveis – arte e vida como a mesma coisa. Do outro lado, o Dogma expõe suas regras como uma disciplina, como um “voto de castidade”, como uma forma de controle, de cerceamento, em que emite regras passo a passo que os cineastas devem seguir, tendo no seu bojo, inclusive, uma apreciação anterior dos criadores do manifesto que atestam um “certificado” aos diretores que se utilizem de suas regras.
Em que ponto essas duas posições são tão claramente contraditórias? Parece-me que a resposta está justamente na noção que temos de liberdade. Liberdade não é aquilo que podemos fazer, mas aquilo que conquistamos fazer, que temos o mérito para tal, ou seja, não existe liberdade “em si” (como não acredito que nada exista em si), mas apenas mediada por fatores éticos, morais, sociais e políticos. Ser livre não é ter liberdade para ser, mas ter as ferramentas para tal. É como diz Heidegger: “Poder pensar não significa pensar.” O que me parece é que a ideia de liberdade na arte se torna uma prisão na medida em que liberdade se tornou um termo cínico de permissividade para tudo, para o lucro desenfreado e a utilização da técnica pela técnica. O conceito de “adrenalina” americano é uma das coisas mais espantosas: quem raios pensou em utilizar uma reação química do corpo como máquina de impulsionar um cinema?
Creio, então, que o que fazem Von Trier e Vinterberg é organizar os conceitos do cinema através do mínimo, do essencial, para mostrar que é possível fazer cinema por fora daquela chave viciada. Ora, veja os filmes do Dogma como Festa em Família e Os Idiotase se perceberá que o que há de mais pulsante naquela composição não está em nada que se pode atribuir como “bem feito” ou “perfeito” (porque é comum à liberdade se atribuir esses adjetivos positivos), mas numa subversão da ideia de limitação técnica: o que é limitação é justamente o que torna o cinema sem limite, que concentra forças fora da lógica da muleta em que técnica e emotividade se tornam prisões.
A carga poética desses filmes está na tensão entre as imagens, na câmera que treme, na luz que mostra e esconde, na atuação dos atores sem mitificação e endeusamento. O Dogma 95 apresenta uma nova forma de fazer cinema justamente no final do nosso século XX e, assim, reapresenta, sob novas perspectivas sociais, políticas e éticas, um caminho possível para o fazer cinematográfico. Não é a toa que, até hoje, ambos os diretores, mesmo fazendo cinema já fora de seus próprios Dogmas, se tornaram referências da sétima arte europeia e não deixam de figurar nas listas dos maiores do nosso cinema. Muitos são odiados porque mudar é fazer mudar e há quem ache e sinta que uma tradiçãozinha é a melhor coisa para se fazer assistindo a um filme, seja no cinema ou antes de dormir.
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http://literatortura.com/2014/01/dogma-95-e-o-cinema-soco-de-lars-von-trier-ninfomaniaca-e-thomas-vinterberg/